Polícia Federal, mídia e o setor de carnes: alguns exageros

No foco da discussão atual está o setor de frigoríficos brasileiro. Dia 17 de março foi a data em que a Polícia Federal, em uma operação chamada de Carne Fraca – esta que se ressaltou ter durado dois anos e ter sido a maior da história do órgão [1] –, fez revelações impressionantes sobre o setor de carnes do Brasil. Os apontamentos envolviam de fraudes na fiscalização (fiscais estariam recebendo propina para não realizarem seu trabalho da melhor maneira possível, deixando passar adiante produtos estragados)até o processamento e comercialização de carne irregular (cabeça de porco), passando por papelão misturado ao conteúdo do que é vendido ao brasileiro.

Os efeitos foram imediatos: perdas imensas de valor das empresas listadas na bolsa, em especial no setor de alimentação e frigoríferos [2], discussões intermináveis sobre a confiabilidade ou não do sistema de fiscalização do Ministério da Agricultura, suspensão da importação da carne brasileira por diversos países [3], reportagens extensas mostrando o tipo de irregularidade que se encontrou [4] e, como o brasileiro decidiu rir para não chorar, uma quantidade incontável de piadas em redes sociais. Em suma, um arranhão notável sobre a confiança do setor.

A sexta-feira de imensas perdas na bolsa de valores de 17 de março se encerrou, passou o fim de semana e então chegou a segunda-feira. O mundo repercute a notícia de que o Brasil, grande exportador de carnes, maquiava parte de sua produção. Eis que, então, surgem explicações sobre o caso, das quais podemos destacar principalmente três: dos quase cinco mil postos de processamento de carne no país, apenas 21 tinham irregularidades reais que acarretaram na imediata proibição de exportação e comercialização de seus produtos e, além disso, o processamento da cabeça do porco não é uma irregularidade e o polêmico “papelão na carne” era, na verdade, uma embalagem que alocaria o produto [5].

Após os acontecimentos da fatídica sexta-feira, tivemos disparado um alerta máximo sobre a qualidade da carne brasileira para o mundo – este que fora seguido pelo envio de comissões de diversos países para analisar se as irregularidades estão presentes ou não nos frigoríficos específicos que exportam, e se caso não estejam, serão baixadas as suspensões de importação. Neste momento, já estão ocorrendo cancelamento destas suspensões [6]. Eis o que deve acontecer nas próximas semanas: outras comissões virão ao Brasil para analisar a situação de nossos produtos – e nossos padrões de qualidade – para, em seguida, sinalizar o fim da suspensão de importações. Outras irregularidades podem sim vir a serem encontradas, porém, boa parte dos pontos deverão servir apenas para autorizar a continuidade das compras de carne brasileiras.

As duas maiores empresas brasileiras deste setor – JBS e BRF – estão listadas em bolsa e sofreram um considerável abalo nos últimos tempos devido a este questionamento levantado sobre todo o setor. Inicia-se agora um período de verificação intensa sobre os processos produtivos e sanitários destas e de outras centenas de empresas brasileiras que exportam carne e, enquanto esta dúvida permanecer, a situação destas empresas na bolsa tende a ser mais negativa do que positiva. Porém, considerando os dados de produção e comercialização deste mercado, nacional e internacionalmente, temos alguns motivos para acreditar que o impacto maior talvez seja de curto prazo.

O mercado brasileiro de carne é imenso: temos o segundo maior rebanho bovino (atrás apenas da Índia), somos o segundo maior produtor (atrás dos EUA), o segundo maior consumidor e o segundo maior exportador, segundo dados de 2016 do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos [7]. Além do mais, as perspectivas para o futuro são de aumento nesta participação (mesmo que as previsões ainda indiquem que estaremos atrás dos Estados Unidos):

[8]

Outra previsão futura, desta vez vinda da Assessoria de Gestão Estratégica do Ministério da Agricultura, sinaliza que o Brasil deverá abraçar 44,5% do mercado de carnes em 2020 [9].

Dado o tamanho que tem este mercado, duas inferências podem ser realizadas: em primeiro lugar, não é factível imaginar que exista substituição dos produtos brasileiros no curto prazo – o que deve resultar em aprovação após análise dos nossos processos sanitários pelos diversos países que suspenderam as compras, nem que seja por um período que seja sucedido de um cancelamento (após encontrar tal substituto) – e, em segundo lugar, certamente este notável mercado mundial já teria suspendido e até cancelado as compras do Brasil anteriormente caso notasse irregularidade no produto adquirido – é natural supor que os compradores verifiquem a procedência dos produtos para seguir realizando novas aquisições, ou, simplesmente, deixariam de fazê-las. Certamente o mercado comprador ao redor do mundo ficará com o pé atrás quanto a expandir suas compras com o Brasil – e ficará a cargo dos produtores nacionais mitigar esta impressão nos próximos anos –, mas, no curto prazo, é difícil imaginar que os danos demorem a ter início de reversão.

Aproximando desta parte é possível imaginar uma discordância do trabalho da Polícia Federal e alguma teoria sobre como ela deseja seletivamente acabar com alguns setores produtivos brasileiros, mas este não é o caso; o trabalho deste órgão tem sido de excelência. A questão aqui recai sobre a maneira de apresentação de dados: não há problemas em afirmar que há uma investigação em curso sobre o setor de carnes, mas é ao menos questionável o motivo de, em vez de tratar das irregularidades quando elas assim o são (reiterando que papelão era para embalagem e a cabeça de porco pode sim ser processada, com os devidos cuidados) e apresentar o problema em sua extensão (são 21 os frigoríficos com irregularidades apontadas, de um total de quase cinco mil no país), apresentar-se algo mais genérico como “todo o setor tem esse tipo de problema”.

Olhando pelo lado positivo, temos que um novo pente-fino sobre a qualidade do setor está sendo passado pelo mundo inteiro neste momento, e isso, para o consumidor é extremamente positivo, pois o que tiver irregularidade sairá do radar da melhor maneira possível: pela via mercadológica. Em todo caso, perdas estão ocorrendo e devem ocorrer ainda por algum tempo – estas perdas são limitadas porque, ressalta-se, no curto prazo não há substitutivo para a carne brasileira exportada (uma vez que o Brasil é um dos maiores exportadores de carne do mundo), então os impasses devem ser resolvidos em um curto espaço de tempo [10]. E, é claro, as novas irregularidades que devem ser encontradas nesta nova análise serão tratadas – basicamente porque as empresas não desejam perder seu mercado, tanto nacional quanto internacional. No curto prazo, prejuízos imensos estão ocorrendo – e não se resumindo apenas aos alvos da operação, mas também a toda a cadeia produtiva envolvida [11] -, mas com o passar do tempo os esforços serão recompensados.

Outro motivo pelo qual o resultado desta operação – mesmo com essa questionável divulgação de dados ocorrida – será muito mais positivo do que negativo ao consumidor é a possibilidade de que, no caso de serem encontradas maiores irregularidades em frigoríficos grandes, suas dificuldades acabem acarretando uma força maior aos produtores menores, estes que buscarão demonstrar a certificação da qualidade de seus produtos para obterem o mercado. Em suma: por um aumento da verificação da qualidade e possivelmente por um efeito maior de concorrência, o consumidor acabará sendo beneficiado.

É preciso reforçar que não há nenhum problema com a atuação da Polícia Federal, em qualquer operação que seja; mas fica o adendo para que, em próximos anúncios de operações, estejam presentes mais quais foram as irregularidades encontradas na investigação e qual a extensão do que se encontrou como irregular do que um alerta geral e irrestrito que, apesar de ter sua importância, a de verificar a qualidade geral do setor, gera prejuízos de curto prazo. O que tiver de ser punido, suspenso, proibido ou afins por estar irregular será devidamente apontado e corrigido – e que sejam corrigidos exageros/desproporcionalidades no tocante a esta divulgação de dados, de modo a permitir que o que se encontrou sob irregularidade seja sumariamente apontado, não um direcionamento geral e irrestrito que possa causar danos até a quem esteja dentro das normas.

 

Caio Augusto – Editor do Terraço Econômico

 

[1]          http://www.infomoney.com.br/mercados/noticia/6246062/maior-operacao-historia-deflagra-carne-fraca-com-mandados-prisao-brf

[2]          http://www.infomoney.com.br/mercados/acoes-e-indices/noticia/6248035/jbs-brf-perdem-bolsa-com-operacao-carne-fraca-gafisa-desaba

[3]          https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2017/03/20/uniao-europeia-barra-importacao-de-carne-das-empresas-investigadas-pela-pf.htm

[4]          http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2017/03/fiscal-que-denunciou-esquema-no-pr-conta-absurdos-que-viu-em-frigorifico.html

[5]          http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/03/associacoes-de-produtores-de-carne-criticam-forma-como-pf-divulgou-acao.html

[6]          http://oglobo.globo.com/economia/coreia-do-sul-cancela-suspensao-de-importacao-de-frango-brasileiro-21090855

[7]          http://blogdacarne.com/index.php/2016/06/29/dados-estatisticos-do-complexo-de-carnes-2016/

[8]          Apresentação da Beef Summit 2014 https://pt.slideshare.net/BeefPoint/beefsummit-brasil-osler-desouzart-cenrio-do-mercado-da-carne-de-aves-suna-e-bovina-em-2014

[9]          http://www.srb.org.br/noticias/article.php?article_id=3320

[10]        http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2017-03/suspensao-de-importacao-de-carne-do-brasil-nao-deve-ser-longa-diz-aeb

[11]         http://www.olhardireto.com.br/agro/noticias/exibir.asp?id=24919&noticia=cadeia-produtiva-avalia-prejuizo-imediato-com-carne-fraca-e-pede-para-setor-nao-ser-colocado-no-banco-dos-reus

 

Publicações deste artigo, que foi escrito em março de 2017:

– Terraço Econômico (24/03/2017): http://terracoeconomico.com.br/policia-federal-midia-e-o-setor-de-carnes-alguns-exageros 

O impeachment gerou a pior crise da história do país?

A partir do impedimento de Dilma Rousseff e da entrada de Michel Temer na presidência, os outrora contestadores do fato de que o Brasil vive em uma crise desde meados de 2014 passaram não só a admiti-la como a utilizá-la como argumento de que políticas de ajuste não funcionam. Recentemente, com a divulgação dos dados oficiais do IBGE para o PIB de 2016 (uma queda de 3,6%, ligeiramente mais suave que os 3,8% de 2015), uma reportagem curta do portal Brasil 247 elevou ao “máximo” nível este raciocínio controverso:

[1]

Como diria Alexandre Schwartsman, esta versão tem apenas um pequeno defeito, que é o fato de não ter qualquer conexão com a realidade. Não entrando na questão “foi ou não golpe”, mas considerando que o terceiro trimestre de 2016 foi o momento da já mencionada troca do comando do Executivo, vamos aos dados:

https://plot.ly/~terracoeconomico/17/crescimento-do-pib

 

Pelo gráfico, é evidente que o crescimento acumulado da economia brasileira vem apresentando uma forte tendência de queda desde, pelo menos, 2011, primeiro ano do governo Dilma. Um pouco antes, o Brasil enfrentava as dificuldades da crise financeira internacional, que interrompeu uma trajetória de crescimento que vinha desde o segundo governo FHC.

Tipicamente, defensores da tese de que o impeachment causou a crise econômica advogam que aumentar o gasto público e baixar os juros na marra são o caminho para o crescimento. Temer e sua base, ao propor e endossar reformas para equilibrar o orçamento e equacionar as contas da Previdência, estariam sufocando a economia. O Banco Central, sob nova presidência desde que Temer assumiu, estaria contribuindo para o desastre, mantendo os juros altos por tempo demasiado.

https://plot.ly/~terracoeconomico/15/pib-divida-bruta-e-selic

Acontece que nenhuma destas duas “soluções mágicas” – abaixar os juros de maneira forçada e elevar os gastos públicos – funcionaram durante o governo Dilma. Este segundo gráfico mostra que nem mesmo um aumento vigoroso da dívida pública a partir de 2014 ou uma queda da SELIC aos níveis mais baixos da série entre 2012 e 2013 foi capaz de reverter a trajetória de declínio do PIB. Se fosse verdade que uma simples aceleração dos gastos (e consequente aumento da dívida) gera crescimento, então teríamos visto uma recuperação em 2014. Não ocorreu. Ao mesmo tempo, o afrouxamento da política monetária teria trazido benefícios em 2012/2013, e não apenas inflação.

A gênese e o aprofundamento da crise não possuem datas precisas, mas o marco inicial certamente não foi após a transição para Temer. A mudança na direção da política econômica tomada no segundo governo Lula (2007-2010) ganhou força na era Dilma e, em conjunto com o fim de condições internacionais amplamente favoráveis, desnudou a fraqueza de nossa economia.

Por um lado, termos de troca mais desvantajosos e taxas de juros internacionais mais altas, a partir de meados de 2011, reverteram o sinal das fontes do crescimento durante a era Lula [2]. Ficou claro que pouco havia sido feito para sustentar o sucesso econômico daqueles anos. Nossas taxas de investimento e poupança continuaram baixas. Nossa produtividade, pífia, reveladora de nossas deficiências em educação e infraestrutura. Nossa indústria de exportação, ineficiente, pouco diversificada e prejudicada pelo baixo nível de abertura comercial. Como resultado, a economia parou de crescer quando as forças internacionais deixaram de colaborar involuntariamente.

Por outro lado, no segundo governo Lula, políticas de estímulo começaram a ser aplicadas de maneira pouco transparente e com justificativas questionáveis. Basta lembrar que o Programa de Sustentação ao Investimento (PSI), também conhecido como Bolsa Empresário, foi iniciado em 2009. Existem, inclusive, investigações que têm encontrado fortes indícios de negociações entre grandes grupos empresariais e os ex-ministros da Fazenda Antônio Palocci e Guido Mantega. O controle peremptório do preço da gasolina, que impactou negativamente a Petrobrás e desorganizou o promissor setor sucroalcooleiro ao modificar os incentivos para a produção de etanol também foi introduzido pelo governo Lula [3].

Com Dilma, as intervenções se intensificaram e foram se tornando cada vez mais opacas. A contabilidade criativa e as pedaladas fiscais tornaram-se instrumentos do descalabro fiscal perpetrado em seu governo: era possível gastar mais sem que “ninguém” soubesse. E gastar mal. As emissões de títulos públicos para capitalizar o BNDES, por exemplo, representaram 1/3 do aumento estoque da dívida nos últimos dez anos, que simplesmente dobrou [4]. Ainda que, apesar de toda a evidência em contrário [5], se argumente que este tipo de alocação de crédito pode ser eficaz, não se pode negar que a economia encolheu e a maior parte destes recursos foi, na realidade, perdida.

Em 2015, a situação fiscal estava tão deteriorada e imprevisível que o então Ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, chegou a propor uma esdrúxula “banda fiscal”. Era a exata medida da responsabilidade do governo em relação à formação de expectativas: nenhuma. Não por acaso, a inflação dos anos Dilma ficou sistematicamente acima do centro da meta, com a ajuda de um Banco Central leniente e apesar da contenção dos preços administrados (combustíveis e energia elétrica, basicamente).

É verdade que a partir de 2013 o Banco Central de Alexandre Tombini aumentou a taxa de juros, mas quando isso ocorreu o mercado já não acreditava no comprometimento da instituição em combater a inflação. Há quem diga que foi este movimento de alta que fez a dívida pública explodir. Esta forma de pensar, além de deixar de lado o papel central dos seguidos déficits primários desde 2011, ignora que a inflação pode fermentar mais a dívida do que a SELIC [6].

Mesmo com a PEC 55, os gastos ainda subirão este ano, ao menos em termos nominais (mas é provável que os gastos reais também cresçam). Isto também invalida o argumento de que uma suposta austeridade está causando a retração no produto. A recessão tem raízes muito anteriores e, embora ainda não tenha transcorrido tempo suficiente para avaliar de forma completa, a influência das propostas de reforma parece ter impacto positivo nas expectativas. O mercado já espera que a inflação fique bastante próxima do centro da meta no fim de 2017, em contraste com os cerca de 7% esperados para 2016 no início daquele ano. As expectativas para a SELIC já estão em torno de 9%, distantes dos 12.25% que se projetava em março do ano passado[7]. Estes indicadores também refletem a recuperação da credibilidade do Banco Central, que encontrou espaço e confiança para baixar as taxas de juros pela primeira vez desde 2013.

Não é aceitável, portanto, que a crise seja atribuída ao novo governo. Algumas inverdades propagadas pela Internet podem simplesmente serem deixadas de lado, por serem auto-evidentes. Outras, por transmitirem relações de causalidade enganosas e prejudiciais à compreensão dos fatos pelo público, precisam de uma resposta mais consistente.

Caio Augusto – Editor do Terraço Econômico

Talitha Speranza – Editora do Terraço Econômico

Referências

[1] http://www.brasil247.com/pt/247/economia/283660/IBGE-confirma-golpe-arrasou-a-economia.htm

[2] Schwartzman, A; Giambiagi F. Complacência.  Elsevier, p. 7-9, 2013.

[3] Veja, por exemplo, esta notícia de 2008: http://www.clicrbs.com.br/eleicoes2008/jsp/default.jspx?uf=1&local=1&action=noticias&id=1852754&section=Not%EDcias

[4] http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/01/divida-publica-sobe-248-em-2015-para-r-279-trilhoes-maior-da-serie.html

[5] Faça uma busca por BNDES no site no Terraço, encontre diversos bons textos e entenda. Você também pode ir diretamente neste link: http://terracoeconomico.com.br/por-que-o-bndes-deveria-ser-extinto

[6] http://terracoeconomico.com.br/quem-e-o-vilao-da-divida-publica2

[7] http://www.bcb.gov.br/pec/GCI/PORT/readout/readout.asp

 

Publicações deste artigo, que foi escrito em março de 2017:

– Terraço Econômico (09/03/2017): http://terracoeconomico.com.br/o-impeachment-gerou-pior-crise-da-historia-pais

– Money Times (11/03/2017): https://www.moneytimes.com.br/o-impeachment-gerou-pior-crise-da-historia-do-pais 

– Investing Brasil (10/03/2017): https://br.investing.com/analysis/o-impeachment-gerou-a-pior-crise-da-hist%C3%B3ria-do-pa%C3%ADs-200178250

Infraestrutura: o grande gargalo brasileiro

No debate econômico brasileiro atual discutem-se diversos pontos do porquê de termos entrado na recessão em que nos encontramos. Os erros vieram de diversas origens: gasto aumentando mais do que a receita, ausência de priorização nesse gasto (foi aumentando, mas não se acompanhavam os resultados), uma espécie de medo não justificado (ou melhor, justificado pelo entrelaçamento corruptivo entre o Estado e os grandes grupos que operações como a Lava Jato têm apresentado) de abrir investimentos em infraestrutura para a iniciativa privada, dentre outros. Especificamente neste último ponto, as consequências são duras: graças a este gargalo, mesmo quando se produz com qualidade e excelência corre-se o risco de ter enormes prejuízos.

Recentemente, o Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Blairo Maggi declarou, em linhas diretas, que a safra recorde de grãos que teremos neste ano de 2017 está “indo para o ralo” [1]. O motivo? Infraestrutura. Neste caso, inacreditáveis 100km não asfaltados da BR-163 (esta que tem ou teve atrasos em quase todos os pontos de seu projeto [2]), rodovia que contribui enormemente para o escoamento de grãos entre o Mato Grosso e os portos do Norte do País.

Devido a este impasse, diversos produtores, que tendo acordadas suas vendas nos portos em termos contratuais e não podendo simplesmente deixar de entregar os produtos, acabam tendo que importar estes produtos de outros países, enquanto observam seu produto se perder no transporte. Ou quando conseguem desviar o escoamento para outros portos (como os de Santos-SP e Paranaguá-PR), veem que a sobrecarga gera uma demora maior na operação como um todo.

Em suma: uma safra recorde está se transformando em um prejuízo estrondoso. Isso sem contar o custo anual de perdas sobre a safra de grãos em nosso país, que alcança a marca de R$9 bilhões [3].

Aqui pode surgir o comentário clássico de quem vê um problema ocorrendo e, desesperado por uma solução, não procura entender onde ele começou: “não seria apenas asfaltar este trecho e permitir que o escoamento da safra siga seu caminho normalmente a solução disso tudo?”. A questão é mais ampla: infraestrutura é um setor que demanda investimentos de prazo mais estendido do que qualquer “pacote de ajuda ao setor” ou “programa de aceleração” pretende demonstrar – e, além do mais, também envolve investimentos continuados para sua manutenção. O imediatismo do setor público em querer trazer para si os méritos de obras dentro de um mesmo mandato, o gerenciamento difuso de projetos públicos, os arranjos institucionais complexos e o receio arraigado da iniciativa privada formam uma combinação que nos traz este atraso observado nos tempos atuais [4].

A deterioração da infraestrutura brasileira pode ser visualizada em dados:

investimentos-em-infra
[5]

Considerando quea infraestrutura necessita de investimentos para sua manutenção, não é difícil compreender, olhando os dados acima, o porquê dos problemas atuais de infraestrutura em nosso país. Um exemplo rápido pode ajudar a ilustrar isso: imagine que uma empresa investiu R$100.000,00 em um estoque de capital, tendo este uma depreciação de 10% ao ano; ao final de um ano, ela terá como estoque de capital R$90.000,00 caso não tenha investido nada, R$100.000,00 caso tenha investido igual ao que se depreciou e mais do que o estoque inicial caso tenha investido mais do que a depreciação. Ou seja: investindo cada vez menos em infraestrutura, dado que ela mantem seu tamanho original ou aumenta, na prática estar-se-á encaminhando a um enfraquecimento do estoque de capital fixo.

Muito mais do que lamentar sobre os problemas de hoje, é preciso pensar em como sair desta situação. A atual equipe econômica apresenta como ideia de equacionamento desta questão ao longo do tempo a abertura econômica para investimentos em infraestrutura, permitindo que o capital privado aumente sua participação [6]. A ideia parece correta por pelo menos três motivos: primeiramente, porque com a Emenda Constitucional do Teto de Gastos a limitação fica mais explícita do que outrora, uma vez que os investimentos não entram em regulamentos que o engessem dentro do orçamento e, assim, acabam sendo os primeiros a sofrerem cortes; em segundo lugar, porque a iniciativa privada geralmente apresenta uma agilidade maior na gestão de projetos; e, em terceiro lugar, porque a saída complementar a isso – ampliar a participação pública – não teve como resultado o avanço pretendido, então seria esta uma nova tentativa.

A infraestrutura deficitária prejudica diversas frentes de desenvolvimento do país, mas podem ser destacadas duas principais: água e saneamento (cujos atendimentos no país são de, respectivamente, 83,3 e 50,3% [7]) com acesso universal permitem que condições básicas de saúde possam ocorrer, o que possibilita um desenvolvimento humano mais adequado do que quando estas condições são ruins; eletricidade, telecomunicações e transportes em melhores condições possibilitam que o foco das atividades produtivas seja, enfim, produzir (e não atentar para questões que não ligadas ao negócio principal de diversas empresas, como fornecimento de energia para saber se é possível produzir, verificar se o sistema de telecomunicações funciona para atender melhor aos parceiros comerciais ou ainda se o que foi produzido pode ser entregue adequadamente). Em suma: a infraestrutura representa o básico para que um país possa crescer com qualidade – e, como podemos observar atualmente, quanto mais deficientes estes aspectos são, pior para o país.

Antes de imaginar que simplesmente uma desestatização em massa ou repasse para a iniciativa privada seja a solução direta de todos os problemas, é preciso lembrar que uma questão a ser resolvida é a das instituições. As regras do jogo precisam estar claras, ou corremos o risco de entrar em um novo jogo de interesses entre Estado e iniciativa privada que, passando a incorreta impressão de que a eficiência por meios privados é impossível, faz com que a opinião popular sobre o tema “privatizações” seja sempre negativa (advindo tal opinião do fato de que os serviços, por mais que tenham melhorado, ainda continuem com curiosas ineficiências).

Dois exemplos são notáveis para explicitar o que ocorre quando as regras do jogo não ficam claras. O primeiro exemplo é o das telecomunicações: após a ocorrência das privatizações nos anos 1990 a rede de acesso se ampliou consideravelmente (há alguns anos já temos mais celulares do que habitantes no Brasil [8]) e, junto com ela, também se ampliou a quantidade de reclamações por má prestação do serviço. Outro, é o da Medida Provisória 579, que rompeu com regras estabelecidas previamente em contratos de longo prazo do setor elétrico, ocasionou uma redução dos investimentos no setor e uma multa de R$62 bilhões que será paga por todos os brasileiros [9]. Em outras palavras: não estabelecer regras claras ou quebrar as regras no meio do jogo são duas atitudes que resultam em danos, mesmo quando a operação da infraestrutura ocorre por via privada.

Infraestrutura é o grande gargalo brasileiro porque acaba por dificultar enormemente as atividades econômicas que dela se utilizam – ou seja, praticamente todas. No Brasil, a produção tem avançado em termos de tecnologia e otimização (embora haja ainda um enorme caminho a percorrer), mas não ter condições básicas de produção atendidas, como são as de infraestrutura é um problema gravíssimo. O tempo gasto resolvendo questões advindas de um péssimo fornecimento de infraestrutura poderia ter sido gasto produzindo bens e serviços e, ao longo do tempo, isso faz uma diferença considerável.

 

Caio Augusto – Editor do Terraço Econômico

 

[1]          http://www.istoedinheiro.com.br/safra-recorde-esta-indo-para-o-ralo-diz-maggi/

[2]          Confira qual o tamanho do atraso, por ponto, na página 27 do Texto Para Discussão 2253 do IPEA, de novembro de 2016 http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2253_web.pdf

[3]          http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/campo-e-lavoura/noticia/2014/03/transporte-deficiente-de-graos-causa-perda-anual-estimada-em-r-9-bilhoes-ao-brasil-4445535.html

[4]          Obra do economista Raul Velloso levanta a discussão sobre como melhorar a eficiência do investimento público no Brasil http://www.raulvelloso.com.br/investimento-em-infraestrutura-no-brasil-continuar-investindo-apesar-do-ajuste/

[5]          http://www.portaldaindustria.com.br/agenciacni/noticias/2016/07/empresas-privadas-respondem-por-54-dos-investimentos-em-infraestrutura-no-brasil/

[6]          http://www.valor.com.br/brasil/4742173/brasil-precisa-abrir-para-investimento-e-infraestrutura-diz-meirelles

[7]          http://www.tratabrasil.org.br/saneamento-no-brasil

[8]          https://www.tecmundo.com.br/celular/26912-brasil-ja-tem-mais-celulares-ativos-do-que-habitantes.htm

[9]          http://www.gazetadopovo.com.br/economia/consumidor-tera-de-indenizar-transmissoras-de-energia-ate-2025-f50malk37k0gn10hl3yq8chfq

 

Publicações deste artigo, que foi escrito em março de 2017:

– Terraço Econômico (07/03/2017): http://terracoeconomico.com.br/infraestrutura-o-grande-gargalo-brasileiro

– Menção na página “Por quê – Economês em Bom Português”  (09/03/2017): https://www.facebook.com/porque.economia/posts/791264474370674

– Instituto Millenium  (09/03/2017): http://www.institutomillenium.org.br/destaque/infraestrutura-grande-gargalo-brasileiro/ 

– GO Associados  (20/03/2017): https://gallery.mailchimp.com/ab23f2069be94b2201ffe6884/files/97c9581a-ee5d-4abd-ac98-27edf31538a6/RE_20_a_24_de_Mar%C3%A7o.pdf