Benefícios difusos: o que são, por que são pouco notados e por que importam

A necessidade de reforma da previdência não é nenhuma novidade. Mas toda vez que se toca nesse ponto ou em outro polêmico, a coisa fica complicada. Surgem diversos grupos de interesse que, com suas próprias razões, alegam que qualquer reforma implicará em perdas para toda a sociedade. Em totalidade não estão errados, mas se esquecem de apresentar uma verdade: perdem eles, grupos de interesse no tempo atual para que a sociedade, especificamente, a que vem nas próximas gerações, possa ter acesso a estes direitos.

Benefícios difusos são aqueles que toda a sociedade usufrui, mas não é possível determinar com exatidão quais serão os principais beneficiados. Esses benefícios não geram grupos de interesse por não serem efetivamente notados. Como proteção de fronteiras, ou o serviço de preservação do Ibama.

Sem sombra de dúvidas a questão previdenciária é a que mais ilustra como benefícios difusos são filhos órfãos de uma sociedade: o argumento principal de quem se opõe a ideia de que este sistema precise de uma profunda reforma  (sendo pelo meio atualmente em discussão ou qualquer outro) é o de que as pessoas que contribuem hoje para ele já programaram de alguma forma suas vidas ao longo do tempo aguardando receberem o benefício e que, mudanças neste “ao longo do tempo” servirão para retirar este direito ao qual elas já esperam. A causa é justa, porém, deixar de levar em consideração que não realizar revisões de qualquer natureza no período atual pode significar o não recebimento deste direito pelas próximas gerações é uma espécie de egoísmo inter geracional.

Deixando de lado a questão entre o que seria direito adquirido e expectativa de direito [1], e olhando apenas a questão em termos de arrecadação e destinação de recursos, temos que há um desequilíbrio estrutural causado, dentre outros motivos, pela mudança da demografia brasileira.

Além da demografia em mudança, temos o descasamento entre a contribuição e o recebimento de recursos de diversos regimes previdenciários públicos diferentes: em muitos casos, recebedores das aposentadorias contribuíram pouco ou quase nada e, como seguem recebendo as aposentadorias apesar de novas mudanças dos que contribuem, acabam por fazer o déficit acontecer de fato [2].

Tendo em vista o panorama atual em que há descasamento já nos dias de hoje entre quem contribui com o sistema previdenciário e quem o recebe, por que ainda assim há dificuldade de se comunicar que este problema hoje complicado pode se tornar ainda mais complexo caso não seja ajustado de imediato? Uma das razões que pode explicar isso é que os benefícios da realização de uma reforma previdenciária são difusos e pertencem aos aposentados do amanhã, estes que não tem representação nos dias de hoje justamente por não estarem recebendo os benefícios.

Como proceder diante de uma questão como essas, em que há um problema a caminho mas ninguém está disposto a enfrentá-lo porque os benefícios não virão de imediato? Talvez o melhor caminho seja o de apresentar, em termos atuariais, fiscais e de capacidade de investimento do governo, quais são os efeitos de não se realizar um conjunto de mudanças sobre a evolução deste desembolso atualmente.

Apresentei esta reflexão sobre o que fazemos com o país no tempo presente e os efeitos para o futuro em artigo anterior [3], mas reforço: seguir na continuidade de uma estrutura que atualmente já apresenta déficit aguardando que um problema que já existe dê ainda mais sinais de que está presente é quase como enxergar uma casca de banana a alguns metros de seu caminho e pensar “que pena, vou cair daqui a pouco”. Se danos podem ser evitados, se direitos podem ser conservados e melhor estabelecidos ao longo do tempo para as próximas gerações, qual o motivo de não tomar atitudes que permitam que este caminho seja seguido?

Retornando ao caso econômico, que é o do reformar ou não reformar a previdência para garantir o acesso a esse direito pelas gerações futuras, Vinícius Carvalho Pinheiro já em 2001 apresentou uma dura verdade a ser enfrentada:

“O equilíbrio atuarial é uma espécie de bem público que interessa a todos, mas ninguém tem incentivo individual suficiente para lutar por ele. (…) Somente o aumento da transparência fiscal e da conscientização social a respeito de como se opera a distribuição de renda no orçamento público pode romper essa perversa lógica de ação coletiva.” [5]

A luta pelos benefícios difusos é silenciosa e costuma ser algo reservado aos visionários – no sentido ruim da palavra (loucos, lunáticos). Mas, simplesmente deixar de lado questões como essa e tantas outras que envolvem “ter agora todo o benefício ou distribuí-lo com o Brasil do futuro”, fará com que justamente no futuro a dificuldade para equalizar questões seja ainda maior.

Caio Augusto – Editor do Terraço Econômico

[1]       Neste debate a diferença é discutida com detalhes. Em resumo, direito adquirido é aquele cujos esforços já foram realizados para que seja alcançado e expectativa de direito é a observância de alguém que está no processo de contribuição sobre um direito que terá caso contribua adequadamente pelo período pré-estabelecido: https://www.youtube.com/watch?v=LTVZXFwjOSM

[2]       Este artigo levanta os marcos principais dos regimes previdenciários públicos no país e apresenta com maior nível de detalhamento como este descasamento entre contribuições e recebimentos impacta no déficit que observamos atualmente: http://revista.tce.mg.gov.br/Content/Upload/Materia/1333.pdf

[3]       http://terracoeconomico.com.br/teto-dos-gastos-e-escolha-social-do-brasil-do-futuro

[4]       http://www.ebc.com.br/noticias/2015/06/projeto-tamar-comemora-aumento-da-populacao-de-tartarugas-marinhas

[5]      http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rce/article/view/31826

 

Publicações deste artigo, que foi escrito em setembro de 2017:

– Terraço Econômico (18/09/2017): http://terracoeconomico.com.br/beneficios-difusos-o-que-sao-por-que-sao-pouco-notados-e-por-que-importam

– Instituto Millenium (18/09/2017): http://www.institutomillenium.org.br/destaque/benefcios-difusos-por-pouco-notados-por-importam/

– Investing.com Brasil (18/09/2017): https://br.investing.com/analysis/beneficios-difusos-o-que-sao-por-que-sao-pouco-notados-e-por-que-impor-200197098?preview_fp_admin_1234=this_is_1234

 

Dilma, Trump e a aceitação da democracia

No dia de ontem o mundo passou a conhecer, após apuração das eleições nos EUA, quem comandará a maior economia do mundo a partir do ano que vem: o magnata do mundo dos negócios Donald Trump [1]. Muito se especula sobre quão danoso isso pode ser – ou até, eventualmente, quais as benesses possíveis advindas deste resultado. Porém, algo que não faz sentido é questionar a legitimidade da escolha social.

Tal como em 2014 no Brasil, a eleição dos EUA em 2016 teve uma troca de farpas intensa entre os candidatos dos dois partidos majoritários, a polarização tomou conta das discussões sociais e o mercado havia precificado que um dos lados sairia vencedor (ao menos essa foi a impressão inicial) [2] – o que, é claro, não ratifica quem seria a melhor escolha para a economia norte-americana hoje e nem brasileira àquela época e, por consequente, para os mercados financeiros globais. Por aqui dois anos atrás tivemos uma imensa quantidade de críticas ao processo, a argumentação de que houve uma doutrinação de boa parte da população (utilizando-se inclusive da acusação de que o “Bolsa Família compra votos”) e até o descrédito de parte da sociedade a aceitar o resultado do pleito. Se há algo a não duvidar neste momento é que tudo isso deve ocorrer nos EUA nos próximos meses também, dada a polarização alcançada – e, como proxy, temos que o resultado foi apertado em quase todos os 50 estados [3].

Winston Churchill citou – ou ao menos é atribuída a ele esta frase – que “a democracia é o pior dos sistemas de representação, com exceção de todos os outros”. A menção a esta célebre citação faz muito sentido no dia de hoje, em que muitos discursos de “o povo não sabe o que está fazendo” ou “essa escolha social está errada” estão sendo proferidos mundo a fora.

A constatação é direta: as escolhas sociais na democracia resultam da opção da maioria e é exatamente isso que este termo representa em sua concepção linguística. É esse o tal poder que emana do povo. Ou seria apenas quando o seu lado de predileção sai vitorioso?

Seria intelectualmente desonesto não considerar fatores como o populismo e a demagogia em épocas eleitorais. Apesar da diferença entre o papel do Estado no Brasil e nos EUA ser notável – nesse ponto, é importante ressaltar que por aqui as decisões em todas as esferas costumam passar muito mais pelo poder público do que por lá – esse resultado eleitoral sinaliza que discursos como “vamos salvar nosso país exclusivamente ampliando a participação do conteúdo nacional em nossa produção” e “vamos ao futuro, só dependemos de nós” rendem muitos votos. Nesse contexto, apesar de o passado recente de países que optaram pela via protecionista e isolacionista sob o manto de um líder populista (como nós aqui na terra tupiniquim) sinalizar para o fracasso econômico, é ainda mais desonesto intelectualmente fazer afirmações sobre como estes fatores tornam inválido o resultado de um pleito. Repito: só é democracia quando o seu lado de predileção vence?

Os mercados globais no dia de hoje reagem com perdas e aumento de aversão ao risco diante de contraditórios discursos emitidos pelo agora representante eleito da maior economia do mundo, como o aumento da nacionalização, a revisão de acordos comerciais já assinados (de acordo com critérios que variam bastante a cada novo pronunciamento) e a redução da relação diplomática com países de economia considerável, como a China e o México. Por outro lado, ao medo da concretização de tais medidas soma-se a incerteza, uma vez que ainda não é claro qual a real capacidade de Trump em colocar suas ideias vendidas para eleitores em prática. Boa parte de suas propostas precisará de aprovação do congresso norte-americano para ser efetivada. Além disso, as mesmas deverão ser validadas considerando-se importantes tratados e alianças internacionais com força de lei federal (no caso de “self executing treaties”) [4]. Isso possivelmente será um fator para acalmar os que pensam que o “fim do mundo será decretado nos próximos dias” – pois, mesmo que a maioria das casas legislativas tenha sido garantida pelo partido Republicano [5], ainda existem discordâncias internas sobre o modelo de Trump (se é que podemos defini-lo como clareza).

De qualquer modo, parece extremamente prematuro prever de um lado “o melhor governo da história dos Estados Unidos” e de outro “o fim do mundo”. É preciso ressaltar que uma das características mais marcantes de Trump é justamente sua inconsistência; deste modo, podemos esperar tanto que suas ideias se traduzam em agressividade quanto em um surpreendente soft approach. O que deve ficar como aprendizado deste evento – assim como deveria ter ficado das eleições de 2014 – é que a escolha da maioria, quando requisitada, deve ser respeitada. A democracia precisa sair do “enquanto meu lado é vencedor estarei concordando” e caminhar em direção ao “hoje podemos perder, mas amanhã tornaremos a ganhar”. Honestamente: qualquer coisa fora disso é ou um péssimo discurso de quem não sabe perder ou um apreço sutil pelo fim da democracia – ou, como diria Millôr Fernandes: “democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim”.

 

Caio Augusto – Editor Terraço Econômico

 

Notas:

[1] http://www.valor.com.br/internacional/4770803/trump-e-eleito-presidente-dos-eua

[2] Em 2014: http://oglobo.globo.com/economia/negocios/reeleicao-de-dilma-faz-petrobras-ter-maior-queda-da-bolsa-com-perda-de-12-dolar-sobe-r-252-14372103 ; em 2016: http://www.infomoney.com.br/mercados/acoes-e-indices/noticia/5727142/mercados-mundiais-tem-dia-panico-apos-vitoria-trump-etf-brasileiro

[3] http://edition.cnn.com/election

[4] https://www.asil.org/insights/volume/2/issue/5/international-agreements-and-us-law

[5] http://g1.globo.com/mundo/eleicoes-nos-eua/2016/noticia/2016/11/republicanos-mantem-controle-do-congresso-dos-estados-unidoss.html

“Jeitinho brasileiro”: regras e discricionariedade

Um problema atemporal do Brasil é o famigerado “jeitinho brasileiro”. O velho conhecido chavão tem origem na ideia de que “regras existem para ser quebradas” – mas, surpreendentemente, sempre é o outro que está errado quando isso ocorre, porque quando a regra é quebrada pelo próprio indivíduo, supostamente existe sempre uma razão completamente justificável para tê-lo feito.

Não se sabe exatamente como seria possível datar o início desta questão tão complicada – não exclusivamente brasileira, mas “aperfeiçoada” por aqui –, mas uma das vertentes que pode ser explorada é a da chamada discricionariedade, que significa, em termos práticos, a ação baseada em pensamento livre (eventualmente dentro da lei, mas sem seguir alguma regra).

Um exemplo ajuda a deixar o que o termo discricionariedade significa: recentemente foi aprovada uma alteração no Código Brasileiro de Trânsito (em seu artigo 228) que institui multa para som automotivo a quem estiver “perturbando o sossego público” sem que seja medido (com um medidor de decibéis) este barulho [1]. Outro exemplo interessante são as “leis da vadiagem” (que ainda ocorrem em alguns lugares do país), que instituem que aqueles que nada estiverem fazendo devem ser autuados e até presos justamente por isso [2]. A semelhança entre os dois casos é simples: em vez de se basear em algum critério objetivo (a superação de um nível de ruído apresentado em um decibilímetro no primeiro caso ou a efetiva prática de algum delito previsto em lei no segundo), o que existe é a abertura para interpretação (do que seria “som que perturbe” ou “atitude suspeita de vadiagem”).

Neste ponto pode ser que o leitor imagine que não há ponto em comum entre esta questão sendo abordada e a economia – ou que, mesmo que esta tangência exista, ela não tenha influência sobre as relações econômicas. A relação entre a discricionariedade e a economia tanto existe que já demonstrou seus efeitos: nos idos de 2012 e 2013 tivemos uma redução da Selic realizada por motivação e influência do governo federal (e não por alguma regra que pudesse estar guiando-a) [3] e os efeitos tanto em juros quanto em inflação e outras variáveis são sentidos até hoje.

Não se trata de aqui colocar em pauta que toda relação econômica deva ser regida por regras – primeiramente porque existem casos em que isso aumentaria o custo (nem toda viatura policial possui um decibilímetro, talvez seja esse um dos motivos da alteração no CBT) e, além do mais, porque isso congelaria as relações e seria improdutivo –, mas sim de gerar uma reflexão: é possível que as relações sociais sejam desenvolvidas por uma associação entre regras estabelecidas e “bom senso” de quem as aplica? Ou não seria melhor ancorarmo-nos em princípios mais objetivos? Deixar a responsabilidade pela aplicação de uma regra sob o direcionamento discricionário de quem irá aplica-la parece mesmo uma boa ideia?

Daron Acemoglu e James Robinson são dois autores que pesquisam o porquê de as nações enriquecerem ou empobrecerem ao longo do tempo. Uma das razões principais apontadas são as instituições – que, trazendo para a atual análise, são as boas regras sendo seguidas por todos e válidas a todos [4]. Segundo pesquisas do autor, essa é a chave que cria incentivos para a economia avançar: a isonomia perante a lei. Seu pensamento é sumarizado na imagem abaixo:

regras-para-todos

Fonte: Página “Por quê? – Economês em Bom Português” [5]

Tão complexo quanto mapear a origem deste problema – a ausência de isonomia na aplicação das regras – é encontrar caminhos que possam mudar esta realidade. Porém, esta mudança pode ocorrer por meio de dois tipos de atitudes: a mudança dos incentivos (como pelo projeto das Dez Medidas Contra a Corrupção [6]) ou a imposição de fiscalização de “atuação fria” (colocar um radar e fornecer manutenção/calibragem diminui a quase zero as chances de uma “multa que não deveria ter sido recebida”). O segundo tipo de ação costuma ser mais custoso e tem menos possibilidade de efetivação (é mais fácil colocar um radar em vias perigosas do que decibilímetros em todas as viaturas do país), mas é o que mais tem capacidade de evitar questionamento, justamente por basear-se em critérios objetivos.

O “jeitinho brasileiro” ainda tem um longo caminho pela frente e uma mudança deste posicionamento depende não só de maior rigidez em fiscalizações como também da movimentação de incentivos que possam mobilizar os agentes em torno de melhorias de comportamento. Caso estas ações não tenham lhe trazido nada a mente, duas palavras o farão de imediato: Lava Jato. Pense no efeito de colocar na cadeia os maiores empreiteiros (como Marcelo Odebrecht) e os mais poderosos chefes políticos do país (como Eduardo Cunha) pode ter sobre a discussão do cometimento de outros ilícitos e sobre a efetividade da justiça como “ferramenta utilizada de maneira isonômica a todos os indivíduos”.

Estamos no caminho das mudanças positivas – o próprio Acemoglu afirmou isso alguns meses atrás [7] –, mas é sempre salutar estarmos refletindo sobre a diferença entre quem aplica a regra e a regra em si, para justamente não cairmos na tentação de, como sugerem alguns políticos, confundirmos “aqueles que abriram as portas para a investigação” com “aqueles que não devem ser investigados porque permitiram que outros fossem investigados”. Essa “carta branca” deve ser concedida apenas aos que realmente não cometem delitos, não aos que apontam questões de outros indivíduos.

 

Caio Augusto – Editor Terraço Econômico

 

[1] http://g1.globo.com/carros/noticia/2016/10/multa-por-som-alto-agora-pode-ser-aplicada-sem-medidor-de-decibeis.html

[2] http://g1-globocom.jusbrasil.com.br/noticias/2365554/lei-da-vadiagem-e-raramente-aplicada-mas-ainda-persiste-no-pais

[3] http://terracoeconomico.com.br/a-regra-de-taylor-e-clara

[4] Os autores mantem um blog para levantar discussões; o blog é homônimo ao livro: http://whynationsfail.com/

[5] https://www.facebook.com/porque.economia/photos/pb.459776257519499.-2207520000.1477338435./706540382843084/?type=3&theater

[6] http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/

[7] http://exame.abril.com.br/revista-exame/o-lado-meio-cheio-do-copo/

 

Publicações deste artigo, que foi escrito em outubro de 2016:

– Terraço Econômico (26/10/2016): http://terracoeconomico.com.br/jeitinho-brasileiro-regras

 

O problema não é o capitalismo, mas o corporativismo

capitalismo

substantivo masculino

1.

econ sistema econômico baseado na legitimidade dos bens privados e na irrestrita liberdade de comércio e indústria, com o principal objetivo de adquirir lucro.

2.

econ soc sistema social em que o capital está em mãos de empresas privadas ou indivíduos que contratam mão de obra em troca de salário.[1]

 

Acima temos definido o que é Capitalismo. As interpretações sobre ele são diversas, mas costumam dividir-se em dois tipos: os que afirmam ser este o melhor meio de alocação de recursos em uma economia e os que acreditam que seja este a origem de todos os problemas sociais do mundo. Há um ponto em que lados tão divergentes provavelmente concordam: o maior problema é o chamado corporativismo, ou, de maneira mais clara, o surgimento de privilégios a determinados grupos de interesse quando da associação destes com o Estado e a consequente geração de danos a outros produtores e também aos consumidores.

Em uma recente ida às ruas, o Instituto Millenium levantou com algumas pessoas a resposta para a pergunta “o que seria o capitalismo?” [2]. A resposta caminhou mais para o lado “a razão de todos os problemas do mundo”. Com a divulgação desta breve pesquisa de campo, os “dois lados” tornam a se chocar: enquanto os que concordam com as benesses do capitalismo indignam-se e afirmam que o resultado da pesquisa é devido a um profundo desconhecimento do que seria o capitalismo, o outro lado concorda com o teor das respostas – o de que este seja a raiz de todo mal.

A impressão das pessoas geralmente caminha para concordar totalmente com a visão do capitalismo como sendo “o mal do século” porque a base que temos de sistema capitalista dentro do Brasil envolve grandes doses de corporativismo. O que isso significa, no que resulta?

Bem, a Operação Lava Jato ajuda a elucidar, na prática: a associação de empresas ao Estado tende a gerar má alocação dos recursos por concentrar mercados (no tocante a empreiteiras, temos poucas que controlam grande parte do mercado) e a aumentar o poder de decisão por parte de quem fornece os serviços de maneira que pode vir a ser danosa a quem os contrata (as empreiteiras investigadas na operação formaram um cartel e decidiam entre si quais venceriam licitações em determinadas datas e, além do mais, o preço cobrado era certamente acima do de mercado). Infelizmente, esta realidade não se resume ao apurado pela Lava Jato: a realidade mostra, diariamente e há muitas décadas, diversos casos em que o entrelaçamento de interesses entre Estado e iniciativa privada gera danos à população.

Em um momento em que a economia brasileira se prepara para uma rodada massiva de concessões e privatizações – ao menos é o que a equipe econômica sinaliza [3] – é preciso encarar esse elefante na sala: o grande problema no Brasil não é o capitalismo, mas o capitalismo de Estado (ou Capitalismo de Laços [4]).

O receio das pessoas de encarar um processo de privatizações se dá porque imagina-se que uma estrutura privada “sugaria” todo o excedente dos consumidores – e este medo não está de todo errado se formos considerar a atual estrutura de diversos setores brasileiros [5] ou mesmo as alegações existentes sobre membros do Estado que teriam sido beneficiados em privatizações nos anos 1990 [6].

Eis o questionamento direto que se levanta quando da análise do corporativismo brasileiro: seriam as maiores empresas (de infraestrutura, por exemplo) ainda as maiores empresas caso não fosse a participação do Estado em incentivar financeiramente e acabar necessariamente criando barreiras à entrada de novos operadores? Não seria essa a danosa expropriação de excedente que a maioria das pessoas contrárias ao capitalismo no país sente?

Apesar de todas as deficiências que o capitalismo apresenta – como a geração de desigualdade de renda – é preciso ressaltar também suas benesses [7]. Em algum sistema que pregue a divisão igualitária de recursos por uma questão matemática é possível ver que a renda média será muito baixa, enquanto no capitalismo a possibilidade existente de aumentar a renda devido a outros fatores é um incentivo à produção e ao aumento de renda média.

Apresentar o capitalismo como sendo algo bom não é a mesma coisa que apresentar o capitalismo como sendo um reflexo puro e simples de meritocracia – algo que significaria que todos os avanços econômicos conseguidos por uma pessoa teriam sido originados necessariamente de seu próprio esforço –, pois este modelo é ao menos questionável: embora alguns afirmem tratar-se do caso de um indivíduo que simplesmente por gerar mais valor será mais recompensado por isso, não é difícil de imaginar que uma pessoa, absolutamente sozinha e independente de quaisquer esforços anteriores a ela, quase nada possa realizar [8]. A ideia é a de suscitar uma reflexão sobre o que se pensa sobre o capitalismo no país em um momento de privatizações próximas e procurar compreender como a situação poderia ser diferente.

Segundo sinalizou Henrique Meirelles recentemente, em uma viagem à China para atrair novos negócios para o Brasil, nosso país estaria passando por um momento de retomada de confiança em que privatizações e concessões seriam meios de reforçar o avanço do investimento e a recuperação da economia como um todo – e, além do mais, afirmou que o caminho necessário é o de reforço das agências reguladoras para que o Estado possa adequadamente verificar o andamento das atividades e cobrar dos novos executores de serviços que estes sejam cada vez melhores [9].

Levando em consideração que, neste cenário descrito pelo ministro, realmente há possibilidade de a economia tornar a avançar, resta saber então os mecanismos a serem utilizados para que o ambiente regulatório cumpra de fato sua função. Em um país onde o presidente da agência que regula as telecomunicações já chegou a afirmar que “a era da banda larga fixa chegou ao fim” [10] (numa direta demonstração de que a defesa do serviço se dá a quem o presta, não aos consumidores), não dá para negar que existe certo ceticismo sobre uma “atuação próxima da ideal por parte das agências reguladoras”.

Devemos buscar uma alteração de estrutura para alcançar um novo status na relação entre o Estado e a iniciativa privada – e muito provavelmente operações de combate à corrupção como a Lava Jato representem um avanço na punição de quem ultrapassa regras e comete ilicitudes, mas ainda temos muito a avançar para mitigar o avanço da corrupção (as Dez Medidas Contra a Corrupção propostas pelo Ministério Público Federal [11] contribuem para isso).

A maior dificuldade deve ser justamente a força por parte dos diversos grupos de interesse existentes – os quais, sejamos sinceros, tem interesse na continuidade da estrutura atual. Caso isso não seja combatido, teremos por tempo considerável uma população que desacredita no capitalismo ou ao menos tem dele uma impressão (in)correta ou mesmo enviesada de que, embora este realmente gere alocação mais eficiente de recursos, seja mesmo capaz também de gerar concentrações mercadológicas danosas ao consumidor e por isso faria mais mal do que bem.

Como exemplo prático, vejamos o setor de telecomunicações: é inegável que seu processo de privatização nos trouxe benefícios (como a quase universalização do acesso a seus serviços), mas também é inegável que a concentração em que o setor se encontra faz com que tenhamos acesso a serviços caros – ou, ao menos, a preços superiores do que poderiam ser caso existisse maior competição [12].

A decisão de fortalecer as agências reguladoras ou permitir que estas sejam submissas e a decisão sobre os repasses de recursos públicos a diferentes áreas depende inteiramente do governo, e com isso, permitir uma maior competitividade aos setores ou sinalizar que a concentração é bem-vinda acaba sendo também um reflexo de sua atuação (nunca nos esqueçamos da política das “campeãs nacionais” do BNDES).

Talvez o problema seja que o capitalismo brasileiro não se aproxime da definição de dicionário, mas sim de um corporativismo que beneficie aqueles que se aproximam do Estado – e, curiosamente, enquanto a culpa pelos problemas sempre é atribuída ao capital, o setor público acaba colhendo os louros de tudo que ocorre de positivo. A torcida se dá para que o cenário ideal de passagem da execução para a iniciativa privada e regulação pelo Estado se concretize nesta nova rodada de privatizações que se aproxima – mas, em um país onde a tradição costuma ser sumarizada pela expressão “jeitinho brasileiro”, é prudente mantermos o ceticismo. Porque, afinal, o que mais parece ter ocorrido até então foi que…

“… o capitalismo nunca chegou a dar o ar de sua graça no Brasil.” (Roberto Campos)

 

Caio Augusto de Oliveira Rodrigues

 

Notas:

[1]          Pesquisa simples no Google pela expressão “definição de capitalismo”

[2]          http://terracoeconomico.com.br/o-que-voce-pensa-sobre-o-capitalismo

[3]          http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/09/henrique-meirelles-no-mundo-sobra-dinheiro-no-brasil-ha-muito-que-vender.html

[4]          Esta expressão é o título de um livro de Sergio Lazzarini. Uma entrevista em que o autor fala sobre o livro está no link a seguir: http://www.insper.edu.br/conhecimento/estrategia-e-gestao/leia-entrevista-com-prof-sergio-lazzarini-sobre-seu-novo-livro-capitalismo-de-lacos/

[5]          http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2092

[6]          http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/manchetes-anteriores/amaury-ribeiro-jr-assim-caminhou-a-privataria/

[7]          http://www.economist.com/news/books-and-arts/21660952-capitalism-not-perfect-buts-it-better-other-systems-whats-alternative?fsrc=scn/fb/te/pe/ed/capitalism

[8]          Este vídeo de Milton Friedman é enfático sobre esta questão da interdependência entre os indivíduos: https://www.youtube.com/watch?v=jgK11FkBJ0U

[9]          https://www.facebook.com/PalacioDoPlanalto/videos/755866141217921/

[10]        http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/04/1762387-era-da-banda-larga-fixa-ilimitada-acabou-diz-presidente-da-anatel.shtml

[11]        http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/

[12]        http://terracoeconomico.com.br/concentracao-e-seus-danos-o-caso-das-telecomunicacoes-no-brasil

 

Publicações deste artigo, que foi escrito em setembro de 2016:

– Terraço Econômico (19/09/2016): http://terracoeconomico.com.br/o-problema-nao-e-o-capitalismo-mas-o-corporativismo1

– Instituto Millenium (19/09/2016): http://www.institutomillenium.org.br/destaque/problema-capitalismo-mas-corporativismo/

– InfoMoney (20/09/2016): http://www.infomoney.com.br/blogs/economia-e-politica/terraco-economico/post/5555896/o-problema-nao-e-o-capitalismo-mas-o-corporativismo

– Menção na página “Por quê? – Economês em bom português” (21/09/2016): https://www.facebook.com/porque.economia/posts/690204901143299

– Repost na página do Terraço Econômico (18/12/2016): https://www.facebook.com/terracoeconomico/posts/1397946460256160