O Estado não é obrigado a criar empregos

As relações trabalhistas em nosso país tem sido alvo de intensas discussões. Grande parte delas envolve o pensamento sobre o atual sistema engessar as relações contratuais entre patrões e empregados ou oferecer proteção necessária a tempos difíceis. Qualquer que seja o lado que você leitor esteja, difícil imaginar que você não conheça alguma pessoa que acredita que quando o governo define atuações profissionais dentro dos diversos setores ele está sempre protegendo estes trabalhadores – ou ao menos uma pessoa que se beneficia disso e então propaga que trata-se de uma necessidade. Este artigo objetiva sinalizar que a história não é bem assim, pois algumas alterações para “proteger” acabam prejudicando, enquanto outras que parecem estar prejudicando acabam por ajudar. Fato é que o Estado não é obrigado a criar ou manter empregos, ele pode no máximo auxiliar uma melhor ou pior alocação de trabalhadores.

Antes de partir para três exemplos de como isso tem ocorrido, é importante ressaltar o conceito de reserva de mercado: a situação criada por um governo quando este impede por vias legais o acesso a bens e serviços de um meio buscando incentivar outro. Isso ocorreu nos anos 1980 com políticas que restringiam a entrada de produtos de informática externos buscando incentivar a indústria nacional [1] e ocorre atualmente com a chamada política de conteúdo local no setor de óleo e gás. Fazendo uma analogia com o mercado de trabalho, podemos aplicar o conceito de reserva de mercado à situação em que há deliberação legal para a execução de atividades, como é o caso da obrigatoriedade do CRM para se exercer a medicina, do CREA para engenheiros ou da OAB para advogados.

Eis os três exemplos sobre como a discussão de reservas de mercado em questões trabalhistas importa: i) é preciso ter diploma para ser jornalista? [3]; ii) é preciso ter CRA para ser administrador de uma empresa? [4]; iii) é preciso ser bacharel em direito para desempenhar atividades operacionais nesta área? [5].

Em todos os casos é possível que tenhamos opiniões afirmativas e negativas às perguntas. Mas, vamos diretamente para a materialidade das questões: o desempenhar das atividades de jornalismo pode ocorrer por quem não é bacharel na área (inclusive, em uma era de informação mais dinâmica do que nunca, isso ocorre o tempo todo), uma imensa massa de administradores de empresas não tem bacharel neste curso e nem é associado ao CRA e, no caso de atividades mais operacionais do direito, um técnico ou tecnólogo é capaz de desempenhar tais funções. Estas três situações ocorrem atualmente, independendo da existência ou não de uma reserva de mercado.

Neste momento é possível que você leitor discorde da existência destes casos – não de que ocorrem, mas de que são permitidos –, com a justificativa de que “algumas atividades envolvem maior responsabilização jurídica”. Concordamos neste ponto: é por isso que, reitero, nesse tipo de atividade que envolve maior responsabilização, a presença de um órgão regulador (que ofereça sanções no caso de erros, por exemplo) é bem-vinda. Porém, pense bem: será que toda atividade operacional precisa necessariamente ser executada pelo indivíduo mais especializado no assunto?

Vamos para um caso prático: dentro da área dos negócios, existem as profissões mais deliberativas e as mais operacionais. Definamos como as deliberativas as que envolvem decisões, por exemplo, no tocante ao fluxo de caixa, planejamento orçamentário e acompanhamento da efetividade deste. Como as mais operacionais tenhamos como exemplo o recolhimento direto de impostos devidos, o gerenciamento da burocracia do processo e demais atividades diretas que envolvam mais a ação do que o planejamento prévio. Eis o que ocorre atualmente: empresas de pequeno porte, que não conseguem arcar com os custos de uma estrutura interna para controle tributário e burocrático, costumam subcontratar tais atividades, ficando com a deliberação orçamentária para si. Algum crime aqui cometido? Não. Apenas a geração de empregos que ocorre a partir da alocação de tarefas para quem pode melhor as desempenhar. Os gestores financeiros seguirão com a análise do orçamento e os que ficarem a cargo da burocracia (que podem ser estes contadores registrados para assegurar a confiabilidade perante a sanções do CRC diretamente e também técnicos contábeis que executem atividades operacionais) lidarão com ela.

Para o leitor que ainda não estiver convencido, lanço um pequeno desafio mental: imagine que a partir da semana que vem o CREA decida que só poderá executar atividades operacionais de uma obra – sendo o mestre dela ou um de seus auxiliares – aquele que tiver bacharel em engenharia e associação ao conselho. Foco: atividades operacionais, não de supervisão. Seria uma boa ideia? Deixaria o setor melhor? Ou geraria desemprego? Essas questões devem ser feitas sempre que surgir a ideia de “proteger” uma classe, sob o risco de que o setor inteiro seja prejudicado.

Outro questionamento que costuma surgir é: como então são regulados os serviços? Quem garante que eles não serão prestados com péssima qualidade? Há basicamente duas maneiras de responder a esta questão: no caso dos serviços com conselhos deliberativos, as sanções estão definidas em diferentes estatutos e, quando se trata de atividade sem este auxílio, o mercado tratará de regular. E aqui não se trata de um “chavão liberal”, a questão é bastante simples. Se uma empresa “esperta” verificar que não tem mais exigências mínimas para contratação definidas em lei/estatuto de classe e decidir contratar mão-de-obra mais operacional para todas as atividades, se isso desencadear queda de qualidade desencadeará também perda de mercado.

Um último ponto importante. Sou economista, mas não acredito que só possa falar de economia aquele que tiver associação ao conselho. Até porque, convenhamos, de bacharéis a doutores podem sair desde pensamentos brilhantes e concatenados à realidade até enormes confusões e desnecessariedades.

 

Caio Augusto – Editor do Terraço Econômico

 

[1]          http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7232.htm

[2]          http://www.prominp.com.br/prominp/pt_br/conteudo/conteudo-local.htm

[3]          http://guiadoestudante.abril.com.br/orientacao-profissional/para-ser-jornalista-e-preciso-ter-diploma/

[4]          http://www.sobreadministracao.com/projeto-de-lei-7280-10-quer-autorizar-o-desempenho-da-funcao-de-administrador-por-pessoas-sem-diploma/

[5]          http://www.conjur.com.br/2017-abr-10/conselho-mec-libera-tecnologo-tecnico-servicos-juridicos?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook

 

Publicações deste artigo, que foi escrito em abril de 2017:

– Terraço Econômico (12/04/2017): http://terracoeconomico.com.br/o-estado-nao-e-obrigado-criar-empregos

Ou as reformas ocorrem agora, ou só quando for impossível não reformar

Uma breve definição de minha autoria sobre o que seria um estadista: aquele que compreende a arte de governar e pensa além do período em que está governando. Incontáveis críticas podem ser feitas ao governo de Michel Temer, mas é hipocrisia deixar de admitir que o olhar para o futuro – o leitor concordando com os meios atuais ou não – é uma marca deste período atual em que vivemos. Um teto real para os gastos governamentais, marco regulatório comparável à Lei de Responsabilidade Fiscal, entrou em vigor; uma reforma sobre a TJLP, buscando reduzir o subsídio governamental aos empréstimos do BNDES através da criação de uma taxa nova, a TLP [1]; uma proposta para reformar a previdência (polêmica, apontada como mais agressiva do que a necessidade das contas públicas, mas inegavelmente necessária) está finalmente sendo discutida no Congresso; pontos de alteração nas relações de trabalho (como a possibilidade terceirização de todas as atividades, que acaba de ser sancionada pelo presidente) também fazem parte da pauta. Tudo isso impactará a economia durante as próximas décadas e, se não ocorrer agora, não deve ocorrer nos próximos dez anos.

Antes de iniciar a explicação da ideia, é importante deixar claro que por reformas aqui se entendem como mudanças em regras válidas para a esfera pública e a iniciativa privada objetivando a geração de ganhos na economia. Isso não envolve apenas a redução do tamanho ou mudança de atuação do governo (teto de gastos e reforma previdenciária), mas também direcionamentos mais flexíveis para a iniciativa privada (reforma trabalhista) que objetivem um aumento do dinamismo econômico.

A explicação para minha previsão de que o fracasso de realizar reformas agora significará a ausência de tal ímpeto reformista nos próximos dez anos se baseia em três pontos principais: o imediatismo brasileiro, o vácuo de lideranças políticas (com possível caminho para extremismos já vividos anteriormente) e o distanciamento, em breve, dos presidenciáveis sobre as atuais propostas.

Sobre o primeiro ponto. No Brasil, tradicionalmente tem-se a visão de que as mudanças que não surtem efeito no mais curto prazo possível significam o fracasso retumbante – daí surge a paixão dos brasileiros por políticas de estímulo, mesmo que o resultado após o superaquecimento gerado seja tão ruim como o que vivemos hoje. Com a mudança de direção na política econômica após a entrada em operação da atual equipe, já é possível notar que, apesar do produto e do emprego ainda estarem em situação crítica, podemos observar expectativas positivas para os próximos trimestres e, fatores macroeconômicos como os juros, a taxa de câmbio e a inflação já tem apresentado melhoria considerável no curto prazo e encaminham para a formatação de um cenário de maior estabilidade no médio prazo – este que é positivo ao país porque permite que o ambiente privado possa atuar com maior planejamento e o poder público possa tratar de questões mais complicadas do que “arrumar a casa”.

[2]

Já o segundo é mais conjuntural: nos últimos grandes momentos de dificuldades tínhamos figuras políticas a quem recorrer, e isto ocorre hoje de modo fragmentado. De modo mais direto: após os problemas demasiados com a inflação alta, Fernando Henrique Cardoso, Ministro da Fazenda de Itamar Franco, surgiu como grande figura política ao ser o símbolo do Plano Real, que mitigou enormemente o problema – o que resultou em uma popularidade que o rendeu a eleição em primeiro turno em 1994 e a aprovação da reeleição (que o permitiu ser presidente por um segundo mandato, logo em seguida). Após o caos nas expectativas ocorrido com os rumores e posterior concretização de sua eleição, Lula permitiu a continuidade de políticas do chamado Tripé Macroeconômico (superávit primário, metas de inflação e câmbio flutuante) e colheu bons frutos na economia, o que aumentou sua popularidade de tal maneira que conseguiu não só se reeleger como também eleger duas vezes Dilma Rousseff, que nenhum cargo eletivo havia disputado até então. No momento atual, as lideranças encontram-se divididas a ponto de não se imaginar uma força capaz de aprovar reformas em um próximo governo.

O terceiro ponto que me permite observar um cenário de dificuldade da existência de uma quase-unanimidade capaz de aprovar reformas necessárias na próxima década é ao mesmo tempo conjuntural e estrutural: seja quem for o presidente eleito em 2018, independente da popularidade que tenha, as chances são baixas de que seja favorável às reformas propostas hoje, mesmo que em outro formato. Isso ocorre basicamente porque as propostas de mudança de hoje são tidas como impopulares. Além disso, diferentemente do que Temer afirma pretender (não ser populista, mas popular [3]) e tem ocorrido com a equipe econômica atualmente em operação, é bastante provável (e tem aparecido em discursos dos possíveis candidatos Lula, Ciro Gomes e Bolsonaro) que as políticas intervencionistas e de incentivo curto-prazista – que, reitero, estão no coração dos brasileiros, independente da ressaca que vem em seguida – estejam nos planos. Claro que com outros nomes atrativos (para tentarem se descolar da equipe econômica de Dilma), mas certamente buscando o máximo de afastamento possível do que se tem atualmente.

Um retorno a políticas de maior protecionismo comercial, injeção de recursos setoriais sem análise prévia ou apresentação dos reais custos sociais [4], além do aumento de um arcabouço que visa a “proteger” os trabalhadores: tudo isto é esperado do próximo presidente, e é difícil imaginar que venha dele ou dela uma decepção neste aspecto.

Dado o contexto de que o momento atual apresentado – de que a hora é adequada para realizar reformas e que, caso não sejam realizadas agora, não ocorrem em um bom tempo –  agora vem a pergunta dolorosa: se não forem conduzidas reformas agora ou em breve, quando devem ocorrer? Inevitavelmente virão a ocorrer quando tornar-se impossível, em termos práticos e diretos (como se hoje já não esteja tão complicado), de expandir ou mesmo manter a estrutura atual, ou quando as exceções virarem regras.

Quanto à dificuldade de manutenção da estrutura, na questão dos gastos governamentais um teto está imposto para os próximos vinte anos (sendo discutido daqui a dez) e discutir sobre como reformar a previdência deve auxiliar consideravelmente no cumprimento desta mudança ao longo do tempo.

Sobre as exceções virando regras: a terceirização, um fenômeno anteriormente mistificado [5], agora é permitido em termos de lei inclusive para atividades fins; o resultado desta alteração deve ser a geração de novos empregos (mesmo que seja apontada a possibilidade de resultar também numa precarização das relações trabalhistas [6]); ou seja, a flexibilização entrou na regra, basicamente porque a exceção cresceu em tamanho.

No fundo, mesmo aqueles políticos que anseiam o cargo máximo do Executivo nas eleições e estejam apontando estas reformas atuais como grandes absurdos desejam que a casa esteja arrumada (ou ao menos melhor encaminhada) em 2018 [7]. Afinal, outro aspecto tradicional em nosso país, infelizmente, é que a máxima de John Kennedy, sobre “arrumar o telhado quando o tempo estiver bom e o sol estiver brilhando” parece não fazer sentido. Se nem após a atual tormenta os danos chamarem a atenção para reformas, talvez elas só venham a ocorrer quando a cobertura vier abaixo.

Caio Augusto – Editor do Terraço Econômico

[1] http://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/imprensa/noticias/conteudo/tlp-substituir-tjlp-em-contratos-do-bndes-firmados-a-partir-de-1-de-janeiro-de-2018/!ut/p/z1/zVTJTsMwEP0WDjm6nmyt4VYWgYDSA5S2uSDHcRJXiR0ctwG-nknhxlKhqhI-eBm_ec8z9pgmdEETzTeq4E4ZzStcL5Ph0-3xzcVVNIVbiB8iGJ-Ho2g2uoAbFtBHmtBEaNe4ki5Tncn2SenWKbcWWwYPSlNLD1TdWKlb7oE2TgnFWw-E0U6uM-OBqxrSrtOtn7LErXAta9IDLHemJZkhW3KSK1vzDC2cNNw6BGeS-H234loqa_ppAD7rz9UIldFl5AfhUIAgsRCSRHHECBdDToY-MF_EPGeInu8KNMFt-KGNAf2TXZAlSox-lgjpfKNkR2faYIgVvf9jBFe7FKbBngo76OPD0o8OSh9Fe9Jfb6__lweEpRTYydmkQFruSqJ0bujiEC8fldTq-TkZY2X2Jfbi6OJflSbmqqhM-vG_jHUaMkyKlbm00g7WFs2lc0174oEHXdcNCmOKSg6EqQep9eA7r9K0GOUXMG3qmoWvRL-d3pHLs5R1D3n9OcyZY69hVRy9AxI0bHg!/dz/d5/L2dBISEvZ0FBIS9nQSEh/

[2] http://www4.bcb.gov.br/pec/GCI/PORT/focus/DISTFREQ/P20170403-Distribui%C3%A7%C3%B5es%20de%20Frequ%C3%AAncia%20das%20Expectativas%20de%20Mercado%20para%20o%20IPCA%20e%20para%20a%20Selic.pdf

[3]          http://www.valor.com.br/politica/4853436/temer-diz-propor-reformas-populares-e-nao-populistas

[4]          https://www.facebook.com/novosnacionalistas/videos/602265403300166/

[5]          https://economia.uol.com.br/planodecarreira/ultimas-noticias/infomoney/2012/07/02/pj-ou-clt-saiba-que-tipo-de-contrato-e-mais-interessante-para-voce.jhtm

[6]          http://www.bbc.com/portuguese/brasil-39375305

[7]          http://g1.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/videos/v/candidatos-em-2018-querem-que-reformas-estejam-feitas-diz-cristiana-lobo/5248512/

 

Publicações deste artigo, que foi escrito em abril de 2017:

– Terraço Econômico (06/04/2017): http://terracoeconomico.com.br/ou-reformas-ocorrem-agora-ou-quando-impossivel-nao-reformar