Privatizar para fazer caixa: ideia questionável

Situação fiscal complicada. A confiança do investidor estrangeiro e também do doméstico indo embora. O governo numa enrascada que demanda confiança. Surge então a ideia de privatizar, desestatizar, conceder para a iniciativa privada parte do Estado. E é neste ponto que a atenção deste artigo será focada.

Essa situação que você leu no primeiro parágrafo aconteceu nos anos 1990 e acontece novamente agora. Se temos uma grande quantidade de estatais e uma dívida que nos complica, qual o problema de associar uma coisa à outra? O problema é como isso será feito.

Nos anos 1990, especialmente em sua segunda metade, havia uma preocupação – sadia e responsável, diga-se de passagem – de reduzir o tamanho do Estado porque, dentre outros motivos, aquela estrutura já não se sustentava mais. Para além de empresas privatizadas unicamente, como a Vale, tivemos também a privatização de sistemas, como o Telebrás, aquele que comandava de maneira pública as comunicações no país, estado por estado.

Resultado do processo de privatizações dos anos 1990? Uma maior eficiência para os mercados e caixa para aliviar a situação fiscal em que nos encontrávamos. Porém, não foi só isso. Ficou também a marca de uma concentração de mercado que passou a seguir.

Antes mesmo de apontar tal concentração e porquê dela ser danosa cabe dizer que, sim, o setor nas mãos da iniciativa privada é consideravelmente mais eficiente do que era até então. De milhares de linhas que custavam alguns milhares de dólares (e você até declarava no Imposto de Renda), hoje são milhões de linhas (mais de uma por brasileiro) e com custo bastante baixo.

Eis então o lado ruim: devido a modelagem dos leilões que não tinham a riqueza de detalhes que conhecemos hoje, principalmente as privatizações setoriais (como nas telecomunicações) resultaram em uma concentração de mercado que acaba por tirar o excedente do consumidor. Saindo do economês e indo ao bom português: as escolhas existem, mas estão entre o questionável e o ruim, pois não há tanta competição assim.

O objetivo principal de qualquer processo de desestatização/privatização deveria ser a melhoria dos serviços prestados e a maior eficiência desses mercados. Segundo nossa Constituição, em seu artigo 173, “a exploração econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”. Sabemos todos como, na realidade, muitas empresas estatais existem para além dessas justificativas.

Uma corrida por privatizar que leve em conta de maneira tão explícita o objetivo simples e direto de fazer caixa distorce interesses e pode nos levar a novas concentrações mais adiante. Inclusive vale citar que essa corrida foi declarada pelo Ministro da Economia na primeira quinzena de novembro como sendo o grande objetivo para reduzir a dívida pública em 2021, como se o visto por sua equipe até agora não tivesse sido suficiente para mostrar a dificuldade disso como estratégia.

Hoje existem modelos muito mais robustos para esses leilões (os laureados pelo Nobel de Economia em 2020 inclusive o foram por estudos nessa área). Resta saber, então, se iremos repetir os erros dos anos 1990. Privatizar, sim. Meramente para fazer caixa, não.

 

Publicado na edição de Dezembro de 2020 da Revista da ACIF Franca (página 20)

#04 Boteco Capital – Caio Augusto (Terraço Econômico): Divulgação de economia e política

Nesse episódio do Boteco Capital, teremos um papo mais descontraído com o Caio Augusto, apresentador do TerraçoCast, o podcast do Terraço econômico.

Falaremos sobre a divulgação de economia e política em canais de mídia, assim como outros assuntos de bastidores de um podcast sobre esses temas. Caio Augusto é Formado em Economia Empresarial e Controladoria pela Universidade de São Paulo (FEA-RP) e faz MBA de Gestão Empresarial na FGV.

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2021 e o fiscal: o que temos na mesa?

Se em 2020 estamos passando por um período em que as regras fiscais estão em suspensão em decorrência da pandemia e do estado de calamidade, pelo que tudo indica o próximo ano não terá a mesma possibilidade e, em virtude disso, a urgente questão fiscal brasileira volta para o foco das discussões.

Na semana anterior tivemos uma novidade em relação a essa discussão: enfim soubemos do que tratará a PEC Emergencial, aquela que coloca dispositivos legais (que podem ser chamados de gatilhos) que direcionam como o orçamento público deve ser gasto diante do da escassez de recursos. Bem, no fim das contas vamos descobrir mesmo o que acontecerá em 2021, já que após certos atritos o governo optou por apresentar a relatoria do projeto apenas em fevereiro do próximo ano, mas já é possível discutir alguns pontos apresentados.

Alguns dos pontos apresentados

Proposta apresentada pelo relator, o Senador Márcio Bittar (MDB-AC), fazia basicamente a união de duas PECs diferentes: a dos Fundos e a Emergencial.

Primeiramente, a PEC emergencial, como já mencionado, tem como ideia a criação de gatilhos no orçamento público para a redução de despesas obrigatórias quando os gastos chegassem a determinados limites. Na Emenda Constitucional do Teto de Gastos tivemos a apresentação de que “os orçamentos não podem superar o teto” e que algumas medidas seriam tomadas quando da aproximação desses limites, mas nenhuma dessas medidas ficaram ali explicitadas.

Nesta medida Emergencial, os principais pontos seriam a possibilidade de redução de horas e salários de servidores públicos e o adiar de concursos, isso levando em conta que a despesa com pessoal é uma das mais relevantes. A questão é que, de mais relevante apresentado até então, a nível da União ela aponta o não aumento de salários até o final de 2021 (o que já havia sido inserido no auxílio aos estados) e a criação de um programa de redução de incentivos fiscais que faça com que essa participação seja reduzida dos atuais 4% do PIB para 2% do PIB nos próximos dez anos (mas que não atingem programas como o Simples, a Cesta Básica e a Zona Franca de Manaus, estes que são bastante relevantes).

Já em relação à PEC dos Fundos, a ideia seria a de criar a desvinculação de diversos fundos públicos que existem e permitir que estes deixem os recursos presentes disponíveis para abatermos a dívida pública. Há, por exemplo, até um fundo específico para a expansão da rede de orelhões no país. Aparentemente existem muitos recursos hoje parados em fundos que não têm utilização. Porém, aqui a questão não é tão trivial em termos jurídicos: a desvinculação de um fundo não significa que o dinheiro ficará “livre para qualquer utilização”, mas sim que entrará em alguma outra pauta de prioridades, talvez de algum outro fundo.

A apresentação da PEC Emergencial levará em conta uma amálgama dessas duas questões e, como em todo debate democrático, verá o adicionar de alguns pontos e reduzir de outros quando passar a tramitar pelas casas legislativas. Mas, importante frisar: do modo como está, não apresenta grandes efeitos reais de diminuição de gastos.

O risco fiscal continua

Pedimos desculpas se a frase que vier a seguir soar repetitiva com o que você leitor já pode conferir nesta coluna em artigos anteriores, mas: o maior risco para a economia brasileira em 2021 é o aspecto fiscal (levando em conta todas as informações que temos até agora e a não ocorrência de um outro Cisne Negro tal qual a pandemia atual). Essa situação, se já era delicada antes mesmo do atual ano, agora é como caminhar sobre um lago congelado enquanto não se sabe quanto tempo o peso será suportado.

A situação atual em que visualizamos uma taxa básica de juros em níveis bastante baixos (o que permite um inédito escoar de capital para diversas atividades e pode desenvolver muitos setores) e inflação controlada depende basicamente dos fatores de recuperação da própria economia brasileira e também do custo de financiamento da dívida pública.

Em relação ao primeiro aspecto, 2021 tende a ser um ano de recuperação do que enfrentamos no ano atual, mas toda cautela é necessária sobre essa análise, sobretudo levando em conta que, diferentemente do ano em que vivemos, o próximo não contará com uma estrutura tão ampla assim de desembolsos de sustentação de crise – tais quais o auxílio emergencial e os programas de manutenção de empregos através de financiamento de folha de pagamentos e redução de horas e salários.

Dentre outros motivos, cabe também apontar que não estaremos mais vivendo um período extraordinário (e, assim sendo, as atuais medidas também extraordinárias perderiam a necessidade de existir) e também porque não há capacidade fiscal para isso.

Já sobre a dívida pública, é importante que tenhamos em mente um fato: não há mais espaço para esperar que ajustes sejam feitos. A cada ano em que passamos no vermelho, mais evidente fica a necessidade de lidarmos com a questão fiscal que nos assola. Isso passa por um ajuste delicado de interesses e uma comunicação direta a respeito de quem sairá perdendo com isso.

No próximo ano o governo terá duas opções: dar as más notícias sobre quem vai perder ou esperar que as más notícias cheguem para estragar o oásis de juros e inflação baixos que nos encontramos atualmente. O que certamente não deve acontecer é um milagre em que nenhuma decisão relevante é tomada em relação ao lado fiscal e ainda assim nada acontece de ruim.

Olhos atentos ao próximo ano. Nele veremos com atenção, ainda mais do que em 2019, se o “mudar isso daí” eleito em 2018 faz mesmo algum sentido ou era apenas fogo de palha.

Publicado no Blog da Guide Investimentos em 14/12/2020

Fim do auxílio emergencial: 2021 vem aí

Um dos aspectos em que 2020 será lembrado, quando o assunto são as contas públicas, é devido a ocorrência de desembolsos em uma magnitude nunca antes vista, em virtude da pandemia. Antes mesmo de entrarmos no atual ano, a previsão já era de um déficit de R$124 bilhões, o que nos faria completar uma sequência de sete anos seguidos nesta situação de contas no vermelho.

Porém, com a pandemia, a aprovação da chamada PEC do Orçamento de Guerra (que foi a suspensão das regras fiscais neste ano) e programas como o auxílio emergencial (que, sozinho, terá sido responsável por uma saída de mais de R$300 bilhões), a estimativa atual quase alcança R$850 bilhões de déficit.

Dado que em 2020 a tônica ao redor do mundo era que precisávamos realizar desembolsos para que a situação fosse aliviada em torno da pandemia, é possível concluir que, neste ano, há uma aceitação por parte dos mercados – mesmo em países que já se encontravam em situação delicada do lado fiscal, como o Brasil -, de que a situação de gastos adicionais seria temporária e, assim sendo, não traria maiores problemas.

Estamos na primeira semana de dezembro deste ano, já temos vacinas (aprovadas ou em proximidade grande de aprovação), cronograma de vacinação já iniciada na Rússia e a ser iniciada no Reino Unido nesta semana. Tendo em vista que as vacinas são, segundo os cientistas, o meio mais direto de enfim encaminharmos o final (ou ao menos o arrefecimento) da atual pandemia, podemos ter certa esperança de que de fato 2021 deve ser mais leve em termos de saúde.

Levando tudo isso em consideração, além do fato de que no Brasil também temos vacinas em teste e logo logo devemos ter resoluções maiores sobre vacinação, o Ministério da Economia, que já havia se pronunciado algumas semanas atrás como sendo contrário ao prorrogar do auxílio emergencial até 2021, reafirmou essa ideia recentemente.

O que muda com o fim desses programas?

De uma maneira bem rápida e objetiva, o que muda é que a quantidade adicional de dinheiro na economia, que ajudou a aliviar os efeitos da crise, de repente não se fará mais presente. Com um olhar mais amplo, podemos observar efeitos sobre três aspectos: o desemprego, a inflação e a força de recuperação da economia.

Em relação ao desemprego, que atualmente está em 14,6%, a grande preocupação com a saída do auxílio emergencial é o significativo aumento que deve ocorrer. O motivo é o seguinte: a contabilização de pessoas como sendo desempregadas se dá com duas condições necessárias: estar em idade e capacidade de trabalho (pertencer a chamada População Economicamente Ativa) e estar procurando emprego nos últimos três meses.

O fim do auxílio levará milhões de pessoas a procurarem emprego novamente e isso certamente pressionará a taxa para cima.

Sobre a inflação, neste ano aconteceu algo notável. Separando em dois grupos, o de bens e o de serviços, temos que enquanto o primeiro observou uma queda entre março e maio mas depois se recuperou (pelo avanço do e-commerce e também pelo auxílio emergencial), o segundo observou uma paralisia que custa a se recuperar até o presente momento. Essa separação fez com que, olhando por faixas de renda, a inflação tenha ficado mais forte sobre as classes mais baixas (cujo consumo de bens básicos representa mais de sua renda) do que sobre as mais altas.

A partir do momento em que o auxílio não estiver mais presente, essa inflação mais forte sobre produtos (sobretudo os alimentícios) deve diminuir.

recuperação da economia, que de fato está ocorrendo, depende também desse impulso dado pelo auxílio emergencial e demais programas de controle da crise. É importante relembrar também que a atual crise não é o único problema a ser superado: no atual ano, mesmo antes de toda a pandemia, ainda não havíamos retomado o nível de PIB perdido pela hecatombe de 2015-2016. Sim, por um efeito de “base depreciada” podemos observar um crescimento razoável no próximo ano, mas com uma redução de bilhões em circulação, não dá pra desconsiderar que essa volta se dê num ritmo mais lento do que se imagina.

Medidas extraordinárias para tempos extraordinários

Um comparativo que muito tem sido feito neste ano é a reação do governo neste momento de crise em relação a como reagimos na crise de 2008. Naquela época o foco se deu sobre o consumo, que foi estimulado por exemplo pela ampliação do crédito e pela redução de impostos, também pelo aumento dos gastos do governo. A problemática se deu porque este ritmo seguiu por muito mais tempo do que o necessário – poderia ter parado em 2010, mas continuou até 2014, sugerindo haver um “moto-perpétuo” entre gastos e crescimento e ainda zombando de quem desacreditava disso.

O resultado acompanhamos hoje: uma crise fiscal sem precedentes com a qual temos ainda de lidar.

É importante ter em mente que, ainda que todos os auxílios de sustentação da atual crise realmente não entrem em 2021, isso não alivia o fato de que a questão fiscal que antes era urgente agora é a primeira da fila de prioridades.

Em outras palavras: se tudo der muito certo, já entramos encrencados no próximo ano, quando o assunto são as contas públicas.

Mas é positivo pensar que, diferentemente de outras épocas de crise, dessa vez, ao menos com as sinalizações feitas até agora, não iremos empurrar para além da situação extraordinária as medidas extraordinárias. Parece até surreal imaginar que isso seria feito porque não temos mesmo condição fiscal nem de endividamento público para fazer isso; entretanto, em se tratando do nosso histórico como país de acreditar em soluções fáceis, rápidas e que se encaixam em belos discursos (mas que cobram contas salgadas e de maneira quase imediata), não daria pra descartar uma nova tentativa desse tipo.

Não será trivial a saída desses programas. Mas é melhor encararmos a realidade de que a economia precisa de reformas estruturantes para crescer de fato, de maneira sustentada, do que cairmos novamente na ilusão de que gastos do governo oferecem um multiplicador ilimitado e sem custos para o futuro. Até porque, convenhamos, estamos literalmente vivendo hoje o pagamento de diversas irresponsabilidades que tentaram contradizer essa verdade poucos anos atrás.

Publicado no Blog da Guide Investimentos em 07/12/2020

Vender reservas para reduzir a dívida: tem certeza disso?

Caso você, leitor, não acompanhe com frequência a coluna do Terraço Econômico aqui no Guia Financeiro, já começamos o artigo com uma informação importante: na economia, a questão mais delicada para 2021 será como o governo encaminhará suas contas públicas, dado que 2020, antes mesmo dos desembolsos extraordinários com a pandemia, já seria o sétimo seguido em déficit fiscal; no ano que vem uma parte considerável da dívida vence logo no primeiro quadrimestre e, mesmo quase entrando em dezembro, ainda temos muitas questões em aberto em relação a isso.

A chamada política de balão de ensaio que elegeu o governo ao consultar com a sociedade temas, confirmar aqueles que tinham boa resposta e dizer que “na verdade era só um teste” sobre os que tinham rejeição, precisaria urgentemente ser trocada por uma atitude altiva e crível diante dos problemas que enfrentaremos nos próximos meses.

O que temos até agora de ideias e planos?

Até agora temos um apontamento já no Congresso – a reforma administrativa, que como está em nada altera o presente. A reforma tributária, que teria um efeito mais direto sobre a eficiência da economia do que necessariamente sobre a arrecadação, fica no eterno adiar de “semana que vem”. Porém, nas falas recentes sobre ideias “fáceis de fazer” (mas que até agora ficamos apenas no aguardo da operacionalização), duas têm chamado a atenção: a de privatizar para reduzir a dívida e a de vender reservas internacionais visando o mesmo objetivo.

Sobre a primeira ideia já temos um direcionamento de que não deve acontecer tão cedo. Primeiramente porque não é automático que esse dinheiro arrecadado vá diretamente para a dívida, ele pode simplesmente ser realocado dentro do orçamento. Em segundo lugar, e talvez ainda mais relevante, porque a sequência infundada de promessas, tais quais “vamos arrecadar R$1 trilhão privatizando” ou mesmo a “vamos privatizar quatro empresas em 90 dias”, mostra que não há conhecimento real da atual equipe dos meandros envolvidos em qualquer processo de privatização ou das negociações envolvidas com o Congresso para que elas venham a ocorrer.

Ou, no mínimo, alguma sinalização mais real de qualquer processo do tipo já seria notoriamente conhecido.

Já a segunda passa por um efeito mais técnico, mas também importante de ser apresentado. Vender reservas para abater dívida não é a coisa mais simples, direta e trivial a se fazer.

Por que vender reservas para abater dívida é má ideia?

Há uma ideia, pelo menos marginalmente reforçada nesses discursos recentes do Ministro da Economia, de que as reservas internacionais estão lá, paradas, sem utilidade alguma e com uma possibilidade imensa de fazer muito pelo país. Algo como “o que estamos esperando para usar esse recurso que nos é disponível e fácil desse jeito?”.

Porém, não é tão simples assim. Dentre outros papéis, as reservas internacionais servem como uma sinalização de que se a moeda passar por algum ataque especulativo, há um colchão de segurança para que uma desvalorização da moeda nacional não ocorra. As reservas financeiras servem basicamente para três funções: ajuste, liquidez e confiança. Trata-se de uma segurança que países que a tem (como o Brasil) ficam muito menos vulneráveis do que países que quase não a tem (como Argentina e Turquia). Aliás, o Brasil já passou por crises cambiais na década de 80 e 90 sem reservas de dólar, e o resultado não foi nada bom…

Por outro lado, existe também um aspecto importante, que é a diferença entre fluxo e estoque.

Pensamos em um exemplo que aparecia de tempos em tempos quando da discussão da reforma da previdência: alguns alegavam que não haveria necessidade de fazer tal reforma uma vez que os grandes devedores do sistema tinham um montante maior a pagar do que o déficit que ocorria; porém, há aí um detalhe importante: o valor devido, ainda que fosse integralmente pago no tempo presente, só o seria feito uma vez, enquanto o déficit que aparece é estrutural; ou seja, as despesas seguiriam sendo maiores do que as receitas (e é esse o verdadeiro problema a ser combatido).

Trazendo a questão de fluxo e estoque para o caso de reservas internacionais e dívida pública, ainda que exista algum efeito direto de redução, o grande problema fiscal brasileiro é o desajuste estrutural das despesas. O Estado pega uma parcela cada vez maior do orçamento público e alívios de qualquer magnitude serão temporários se não levarem isso em consideração.

Há ainda a questão do que isso representa em termos do câmbio: dada a proteção que essas reservas oferecem em função de quaisquer choques que possam acontecer vindos de fora, a sinalização dada por uma redução de proteção (um estoque) para lidar com uma questão que já se arrasta há quase dez anos (e vem em fluxo) daria a entender claramente que não existem realmente grandes planos para lidar com a questão. Até porque, olhando com bastante cuidado, essa questão tem mais influência no câmbio do que em todas as outras – e, embora seja uma saída que já vem sendo utilizada nos últimos anos com certo sucesso, mira o descompasso do dólar e não da dívida.

São mecanismos diferentes e resultados também diferentes.

Sem querer jogar água fria em plena segunda-feira, mas…

O ano de 2021 terá a seguinte escolha diante das más notícias para o lado fiscal: ou o governo começará a contar que elas existem e tomará decisões que impactam no curto prazo ou fingirá que elas não estão presentes e tomará uma rasteira das mesmas.

Não há terceira via.

Pelo lado positivo temos que o diagnóstico existente hoje é apurado e a equipe econômica , ao menos o que ainda resta dela no governo, é razoavelmente bem técnica e preparada. Por outro, diagnóstico e vontade per se não bastam. A não ser que Jair Bolsonaro queira ser, neste último ano da década, um prolongar das medidas de “ajuste fiscal de fantasia” que vimos no segundo mandato de Dilma Rousseff.

Publicado no Blog da Guide Investimentos em 23/11/2020

Eleições 2020: política tradicional de volta

Se há uma marca das eleições de 2018 ela é: “vamos mudar isso daí”. Naquele ano, aparentemente ser parte da política tradicional era um fardo: quase uma condição suficiente para não ser eleito. Ser outsider era a palavra da vez – ainda que muitos, como o próprio presidente, apenas passaram essa imagem, porque no fundo já estavam no sistema há décadas. Foi a eleição do voto com raiva.

Eleições municipais são aquelas em que uma base é formada. Afinal de contas, o município é a esfera pública mais próxima do cidadão. As pessoas vivem nas cidades e é nelas que de maneira mais próxima podem avaliar os resultados de representantes de um determinado partido ou outro. Apesar de vivermos em uma verdadeira salada partidária em que ideologia é algo que não está evidente aos olhos do eleitor, é possível fazer a divisão entre partidos mais à direita, os da amálgama conhecida como centrão e os mais à esquerda.

O paralelo com 2018 é muito importante de ser feito porque nele uma ruptura sistêmica foi observadpela primeira vez desde a redemocratização, aparentemente a máquina eleitoral não fez diferença alguma. O latifundiário de espaços, Alckmin, teve menos de 5% e nem ao segundo turno foi, enquanto o supostamente nanico Bolsonaro, apenas com lives e aparições em redes sociais (e menos de dez segundos de tv) quase levou logo no primeiro turno.

Com ele, vieram governadores e deputados que, de última hora, abraçaram-no quase que incondicionalmente (nesta conta entram pelo menos Doria em SP, Zema em MG e Witzel no RJ). Isso sem falar na bancada do PSL, que de quase inexistente passou a ser a segunda maior, atrás apenas do PT.

O que será que se observou nas eleições municipais em 2020?

Muita conversa, pouco resultado: espaço perdido.

O “mudar isso daí”, que garantiu a eleição de Bolsonaro em 2018, foi mudando paulatinamente ao longo do tempo. Justiça isenta representada por Moro e economia liberal representada por Guedes, que eram as bandeiras principais, foram virando água.

Moro saiu e o fez denunciando interferência na Polícia Federal, o que ainda se apura. Guedes vê a parte técnica ficar cada vez mais enxuta e, diante de um problema fiscal monumental em 2021, fica num bater de cabeças em ideias simplistas e pouco eficazes como uma possível volta da CPMF (que ele chama de imposto digital) ou mesmo “privatizar para reduzir a dívida” (mesmo sequer tendo avançado algo nessa direção até então).

O eleitor vê tudo isso. A esperança misturada com raiva e vontade de mudar tudo na marra aos poucos foi se transformando num abaixar de poeira que permitiu visualizar a realidade. O presidente faz parte do sistema que tanto critica há 30 anos. E “descobriu” que precisa dele para governar – o que faz parte de uma mudança na base política que passou a incluir o centrão como parceiro desde o segundo trimestre desse ano.

É difícil elencar todos os motivos que levaram a configuração que encontramos na manhã desta segunda-feira (08h33min), mas é isso que se verifica: MDB conquistou 454 prefeituras, PSD levou 453, PP com 422, PSDB 356, DEM 313, PL 211 e PDT 205.

Veja que nestes sequer aparecem o PSL (partido que destoou fortemente em 2018), PT (tradicional partido de esquerda) e PSOL. Nas cem maiores cidades, PT e PSL sequer aparecem.

Quando olhamos para as capitais, há uma preponderância de MDB, PSDB e uma presença razoável do PSOL (que inclusive foi ao segundo turno no maior colégio eleitoral do país, que é São Paulo).

O que esperar do amanhã?

Importante ressaltar que por um lado a esfera municipal é a mais próxima do cidadão (portanto a que ele mais pode opinar sobre) e por outro há uma salada partidária em que não se pode cobrar muito a respeito de ideologia.

Porém, em termos gerais, três direcionamentos podemos tirar desse processo eleitoral:

  • O voto para “mudar tudo isso daí” perdeu força: especificamente candidatos apoiados por Jair Bolsonaro (que inclusive direcionou votos em suas lives semanais, o que apesar de ilegal deve passar ao largo de qualquer punição por parte do TSE) tiveram desempenho pífio, sendo talvez a maior derrota referente a Celso Russomano, em São Paulo (que liderava a corrida e derreteu até chegar a 10,5%, ficando em quarto lugar); importante lembrar inclusive que o presidente não tem partido hoje (não dá pra desconsiderar isso como tendo tido algum efeito também);
  • PT e PSOL trocaram de lugar: até a eleição passada o Partido dos Trabalhadores desempenhava liderança razoável na esquerda, mas o que aponta o resultado de ontem é que na verdade o PSOL deve assumir essa liderança (essencialmente a depender dos resultados em São Paulo, onde tem chances reais de conseguir uma vitória);
  • A política tradicional está de volta: seja pela ausência de resultados da suposta “quebra do sistema” que o governo federal prometeu (e até agora deixou a desejar) ou mesmo por um assentar de expectativas, o eleitor decidiu colocar em seu âmbito mais próximo representantes que dois anos atrás jamais estariam ali; a trilha do legislador mediano de partidos como PSD, MDB, e DEM (que ajudam a compor o famigerado centrão) foi retomada com sucesso.

Os ecos de mudança de 2018 passaram um recado explícito a quem está na política tradicional e, aparentemente, este recado foi entendido. A depender disso, caso o governo federal e demais representantes eleitos com a mesma aura almejam continuidade, é mais do que hora de deixar de encontrar problemas e encaminhar soluções.

Ou então não será surpreendente que esse resultado observado agora gere efeitos diretos em 2022.

Publicado no Blog da Guide Investimentos em 16/11/2020

Novembro Azul: se cuidar é coisa de homem também!

No mês passado tivemos a tradicional campanha pela prevenção ao câncer de mama, conhecida como Outubro Rosa e, no mês que vivemos atualmente, temos novamente um período temático sobre os cuidados com outra doença, dessa vez que atinge apenas o público masculino através do câncer de próstata, o Novembro Azul.

Neste artigo você saberá mais sobre os porquês deste mês de alerta e conscientização.

Como começou o Novembro Azul?

Tudo começou em 2003, na Austrália, com o objetivo de colocar na mesa a discussão sobre o diagnóstico e a atenção com doenças que atingem o público masculino, sobretudo o câncer de próstata. A ideia surgiu de uma maneira inusitada: dois amigos, Travis Garone e Luke Slattery, se divertiam em um pub quando se questionaram se seria uma boa ideia deixarem o bigode crescer  – já que se tratava de algo fora de moda – e, inspirados na mãe de um colega deles que estava levantando fundos para uma campanha de conscientização sobre o câncer de mama, decidiram então juntar amigos (foram 30 no primeiro ano) para essa causa.

O que começou como uma campanha local se espalhou e, no ano seguinte, virou a Movember Foundation, entidade que inicialmente tinha como objetivo juntar em um só lugar fotos de pessoas que participavam do movimento No-shave November (em que mais homens pelo mundo decidiam não se barbear neste mês e enviavam fotos da participação). Hoje em dia o movimento se expandiu e apresenta metas que envolvem, dentre outras coisas, diminuir a morte precoce de homens em 25% até 2030.

No Brasil, o movimento do Novembro Azul se iniciou em 2008, com o Instituto Lado a Lado Pela Vida (LAL) e a Sociedade Brasileira de Urologia. O que teve início com uma campanha chamada “Um Toque, Um Drible” naquele ano, se espalhou de maneira vigorosa pelo país e, dez anos depois, segundo a LAL, hoje já é uma campanha que alcança anualmente mais de 100 milhões de pessoas nacionalmente. O símbolo do Novembro Azul é uma fita azul (que, em virtude dessa origem que você acabou de descobrir aqui, pode vir também com um bigode junto).

Um pouco mais sobre o câncer de próstata

O câncer de próstata é hoje a segunda maior ocorrência desta doença em homens, sendo superada apenas pelo câncer de pele não-melanoma. Trata-se de uma doença considerada de terceira idade, dado que 75% dos casos acontecem com homens de idades superiores a 65 anos. A estimativa de novos casos para 2020 é de cerca de 65 mil e, em relação aos óbitos, os dados mais recentes são de cerca de 15 mil (vindos esses dados de 2018).

Apesar de ser uma doença que atinge majoritariamente os homens com mais de 65 anos, a partir dos 50 o risco começa a aumentar consideravelmente. Outros fatores de risco são a ocorrência de pai ou irmão com a doença antes dos 60 anos, hábitos alimentares que levem ao acúmulo de gordura corporal e exposição prolongada a químicos como aminas aromáticas (indústrias química, mecânica e de transformação do alumínio), arsênio e produtos de petróleo. Em suma, o que pode levar a hiperplasia de próstata (termo médico para o aumento dela) são fatores difusos que envolvem justamente alterações hormonais relacionadas a testosterona (principalmente a di-hidrotestosterona), idade, histórico familiar e alterações genéticas.

A doença geralmente não apresenta muitos sintomas e avança de forma silenciosa, vindo deste motivo a importância de se prevenir com antecedência e a presença de exames como o PSA e o toque retal. Mas, apesar de não apresentar muitos sinais, alguns podem significar um alerta, todas elas relacionadas ao ato de urinar: dificuldade, diminuição do volume urinado, a presença de sangue ou mesmo uma frequência maior de idas ao banheiro. A ideia de se prevenir leva em consideração procurar anualmente fazer exames a partir dos 40 anos de idade – embora existam locais que recomendam que esta atenção maior de inicie apenas aos 50 anos.

Hoje em dia, tendo em vista que a campanha alcança uma parte considerável da população e gera muitas buscas sobre o assunto, uma parceria entre o Ministério da Saúde e Instituto Nacional do Câncer (INCA) levou à criação de alguns materiais que podem ser bastante úteis, como a cartilha Câncer de Próstata: Vamos falar sobre isso?, o vídeo Saúde do Homem, e a página orientativa sobre o câncer de próstata.

Novembro Azul com saúde em primeiro lugar e preconceito fora do páreo!

Por se tratar de uma doença rodeada de mitos e preconceitos, principalmente relacionados a um de seus exames de diagnóstico – o toque retal -, costuma, ainda que com a expansão notável do Novembro Azul, ser motivo de piadas e comentários que levam muitos homens a não procurarem agir preventivamente mesmo que estejam com alguns dos sintomas aqui apresentados.

Se você que está lendo este artigo faz parte deste grupo, tal qual o breve vídeo Saúde do Homem que está logo ali em cima, sugiro a seguinte reflexão: você vai mesmo deixar que um preconceito retrógrado te impeça de ter uma longa vida com sua família e amigos? Uma teimosia tola vale mesmo nessa magnitude? A quem você quer provar que é um “grande macho”? A moeda mais cara que existe na vida é justamente o tempo e, não tomar cuidado com uma doença que hoje em dia pode ser tratada de maneira adequada pode fazer com que o seu tempo seja abreviado – e você entre na estatística dos mais de 40 homens que morrem todos os dias em decorrência desta doença.

O objetivo deste artigo não é o de colocar medo ou algo do tipo, mas sim de levantar que essa questão é mais séria do que se imagina e que sim, faz diferença estar atento a ela para que se evite o pior.

Fica aqui a sugestão deste que escreve agora: mande este artigo para quem você conhece que geralmente levanta piadas de gosto duvidoso a respeito dessa questão. Quem sabe assim, de maneira ainda mais direta do que faz a campanha Novembro Azul, você estará ajudando a salvar vidas conhecidas – seja da ignorância ou mesmo dessa doença!

Publicado no Blog da Guide Investimentos em 10/11/2020

Eleições nos EUA: America First vs Globalização De Novo

Não há muitas dúvidas de que o grande tema de 2020 será a pandemia de COVID-19, provocada pelo novo coronavírus. Porém, não dá pra negar que existe outro tópico importantíssimo e que fará muita diferença nos próximos anos: as eleições nos EUA. O que está em jogo na terra do Tio Sam?

Como funciona o sistema eleitoral nos EUA?

Em vigor desde 1787, a forma de votação no país em que 25% da produção mundial é feita todos os anos é no mínimo, peculiar. Os 50 estados tem suas votações (seja antecipada ou no dia D, 03/11/2020), e o candidato que ganha leva o número de delegados que representam o Estado, no modelo ‘winner takes all’, com a exceção dos estados do Nebraska e do Maine, que tem um modelo híbrido entre a votação total do estado mais o resultado de seus condados.

Por exemplo, na Califórnia, há 55 delegados que representam o estado da costa leste americana. Se o Biden ganhar de 51% a 49% ou de 76% a 24% pouco importa: os 55 delegados votam (na grande maioria das vezes) conforme o voto popular. Vale ressaltar que o exemplo da Califórnia em favor do Biden não é aleatório, uma vez que os democratas não perdem para os republicanos no estado desde 1992.

Nesse modelo, há uma corrida para estados-chave que tem um maior número de delegados, e que a vitória nesses locais pode ser decisiva para ganhar o pleito:

Mapa dos EUA separado por estados e o número de colégios eleitorais
Fonte: https://www.procon.org/headlines/the-electoral-college-top-3-pros-and-cons/

Ainda, há estados que são conhecidos por não terem uma preferência clara por um dos partidos, e por isso são chamados de swing states. São eles: Texas (38 delegados), Flórida (29), Pensilvânia (20), Ohio (18), Carolina do Norte (15), Arizona (11), Wisconsin (10), Minnesota (10), Iowa (6). A Flórida, inclusive, já protagonizou histórias de recontagem de votos e muita confusão na apuração por diferenças mínimas de votação, como foi o caso da eleição em 2000.

Esse modelo, portanto, pode levar a uma vitória no Colégio Eleitoral, mas uma derrota no voto popular, como aconteceu na última eleição, e também em 2000. Apesar da instituição do Colégio Eleitoral ter sido questionado nos últimos anos, ninguém pode dizer que a regra não é clara: são necessários 270 votos para vencer a disputa, considerando os 538 em disputa nos estados americanos.

E para complicar ainda mais o sistema, o resultado pode empatar (como aconteceu em 1800), ou ainda que nenhum candidato atinja o número de votos para ganhar (como aconteceu em 1824). Embora improváveis, os resultados descritos acima não são impossíveis de acontecer.

Duas plataformas diferentes em disputa

Possivelmente a grande diferença existente entre as duas plataformas em disputa é a seguinte: a reeleição de Trump significa a continuidade das políticas que colocam em primeiro lugar os EUA de um modo bastante nacionalista (America First) e a eleição de Biden pode significar uma volta no compasso de globalização (Globalização De Novo).

A plataforma America First é aquela iniciada com a entrada de Trump em 2016 que leva em consideração uma ampla renegociação de contratos com a motivação de posicionar melhor os EUA, que estariam de alguma forma sendo prejudicados em todos eles. Esse tipo de postura inclusive é o que gerou a Guerra Comercial que vem ocorrendo com a China nos últimos anos.

Já o conjunto de ideias Globalização De Novo sai dessa metodologia e busca uma retomada de alianças, sobretudo comerciais, mais amplas dos EUA com o resto do mundo. É líquido e certo que isso vá acontecer rapidamente? Não, ainda mais levando em conta o histórico recente de atitudes mais beligerantes, como por exemplo da saída do Acordo de Paris. É possível inclusive que essa “virada de mão” dê mais trabalho aos EUA do que inicialmente se imagina.

Vem recorde de eleitores por aí?

Até 31/10/2020, com três dias de distância para o dia “oficial”, mais de 90 milhões de eleitores já haviam votado. O recorde histórico será quebrado se a previsão para 2020, de 150 milhões, for atingida (e será o maior número de votos desde 1908 se isso ocorrer).

Apenas para efeito comparativo de como o interesse na eleição deste ano é notável, quatro semanas antes desse dia já haviam 3,8 milhões de votos registrados (contra apenas 75 mil no pleito de 2016). Detalhe importante: estamos falando até agora de mais de 90 milhões de votos antecipados – dado que hoje, 03/11, é o dia principal das eleições, em que uma parte considerável dos votos por todo o país são enfim depositados nas urnas.

E o Brasil com isso?

Temos com Bolsonaro um certo alinhamento com Trump, em questões diversas. Paradoxalmente, este alinhamento quase que incondicional não tem nos rendido frutos tão consideravelmente vigorosos quanto se imaginaria, a troca parece mesmo ser mais favorável ao Tio Sam – e um famigerado “amanhã a gente vê” para Terra Brasilis. A continuidade de Trump na Casa Branca tende a seguir essa estratégia.

Para o caso de uma vitória de Biden, a situação não ficaria muito melhor. Esse alinhamento quase cego a Trump em diversas pautas faz com que a diferença seja grande o suficiente para, ao menos em um primeiro momento, duvidar de uma “mudança considerável” que permita uma aproximação com algo tão diverso. Estaria colocada em xeque a política totalmente ideológica de Bolsonaro.

Ainda assim, esse cenário com Biden na Casa Branca pelos próximos quatro anos pode significar uma mudança. Por qual motivo? Bem, é só olhar a quantidade de “nunca farei” que viraram realidade no atual governo – como por exemplo a aproximação com o Centrão, que seria supostamente a fonte de todo o mal dos últimos 30 anos.

Qualquer que seja o caso, o mais importante a se pensar é que veremos uma volatilidade razoável adiante. Afinal de contas, a continuidade de Trump frustraria um certo conjunto de expectativas que estão sendo formadas por essa mudança e, ao mesmo tempo, a chegada de Biden não ocorreria sem certo custo de reversão de políticas colocadas em prática nos últimos anos. Ah, e claro: ainda existem a Guerra Comercial e a pandemia para lidarmos. Apertem os cintos.

Publicado no Blog da Guide Investimentos em 03/11/2020

Independência do Banco Central e como instituições importam

Dentre as mudanças relevantes em discussão na economia brasileira em 2020, está a de tornar oficial – dentro de lei – a independência do Banco Central. Você sabe o que é isso e por qual motivo é importante?

Voltemos alguns anos. Eleições de 2014: Marina, com intenções de voto em alta após o acidente que vitimou Eduardo Campos, tinha entre suas propostas tornar o Banco Central independente; a campanha de Dilma ataca forte, colocando isso como sendo “a dominação dos banqueiros de juros, de salários e até do alimento na mesa do trabalhador”. Desonestidade pura.

Para entender a importância da independência do Banco Central vale conhecer um pouco das funções desta instituição e também as do governo e do Congresso. A autoridade monetária administra a chamada política monetária que, no fim do dia, é responsável pela estabilidade da moeda e da inflação ao longo do tempo. O Congresso e o governo são responsáveis pela política fiscal, que é a decisão sobre o orçamento público.

Temos, desde a Lei de Responsabilidade Fiscal (de maio de 2000) um acordo tácito de que o governo não interferirá no Banco Central, permitindo que este foque em sua missão de buscar a estabilidade da moeda no longo prazo independente do que pensar o governante da ocasião.

Acontece que acordo tácito, em nosso Brasil, costuma significar “está autorizado mudar a qualquer momento”. No primeiro mandato de Dilma Rousseff foi exatamente o que aconteceu: mesmo com a inflação resistente – e os juros servem justamente para fazer esse controle do nível de preços, pelo mandato do nosso Banco Central -, os juros caíram forçadamente por intenções do Executivo e, como resultado, subiram e permaneceram em um patamar elevado por um certo tempo até que a inflação pudesse se acalmar.

A partir do momento em que passarmos a ter em nossa Constituição que nenhum governo poderá interferir na atuação do Banco Central, teremos um nível maior de segurança sobre as ações dessa instituição tão técnica e séria de nosso país.

Com uma breve anedota podemos explicar a importância das instituições frente a discricionariedade dos governantes. Imagine que você e um amigo estão dirigindo dois carros e decidem a seguinte façanha: ambos vão acelerar um na direção do outro e quem virar o volante e desviar do outro primeiro terá perdido. Só há uma maneira de ganhar com certeza essa insana disputa: alinhe o seu carro e arranque o volante. Afinal de contas, assim você garante que não irá virar – e que o seu amigo irá desistir da brincadeira.

No campo das instituições a situação é análoga: é sempre preferível termos como base das decisões as regras do que a cabeça de quem está comandando naquele momento. Ao menos é o que sinalizou fortemente Douglass North (Nobel de Economia em 1993) e o que aponta Daron Acemoglu (que muitos economistas, dentre eles este que aqui escreve, acredita que ainda será laureado pelo mesmo prêmio).

Em suma: independência do Banco Central é ótima notícia, não se deixe enganar por quem falar o contrário.

Publicado na edição de Novembro de 2020 da Revista da ACIF Franca (Página 22)

Fome de poder: você tem fome de quê?

Seguindo a linha de indicações das sextas-feiras nesta coluna, hoje vamos falar sobre o filme Fome de Poder, que conta a história de como o McDonald’s virou a mundialmente conhecida franquia dos alimentos (e dos imóveis) que conhecemos hoje.

Ray Kroc, um esforçado vendedor de máquinas de milk-shake estava em sua rotina suada de convencimento para vender uma ou outra unidade quando recebe um chamado pedindo uma quantidade razoável de máquinas. Dada a dificuldade de vender uma, ele decidiu ir conferir se não era uma pegadinha. Conhece assim os irmãos McDonald, Dick e Mac.

Logo ao chegar, a surpresa: diferentemente de todas as lanchonetes daquela época, ali não parecia haver uma espera enorme entre o pedido e a chegada da comida e, para deixar tudo ainda mais surpreendente, havia uma grande fila. Em outras palavras: um baita sucesso que valia a pena ser observado mais de perto. Encontrando Mac, ouve dele “quer conhecer como a gente faz isso?”. Kroc não hesita e vai. Gosta tanto do que vê que chama os irmãos para jantar para saber mais sobre a história do negócio.

Para não dar spoiler e evitar que você fique desmotivado de assistir ao filme, falaremos não da história corrida em si, mas de algumas das lições que ele traz.

Trabalhe por processos e revolucione

É sabido que nem toda atividade dentro de um negócio pode ser padronizada, mas, ainda assim, pensar tudo como se fossem processos diferentes otimiza tudo. O grande diferencial do McDonald’s (e que, após ele, outras redes emularam) foi justamente esse: transformar o meio comum de servir comida em algo padronizado, com um caminho estabelecido e que deve ser seguido.

Pense em todas as atividades que você desempenha. Dificilmente 100% delas sejam novas todos os dias. No que você puder, coloque processos e veja como a eficiência geral aumenta.

Foque no que você é bom…

Logo ao início do filme os irmãos McDonalds contam que de um cardápio complexo com quase trinta itens notaram que 87% da receita vinha basicamente de hambúrgueres, milk-shakes, batata frita e refrigerante.

Já parou para pensar em quantas atividades diferentes você desempenha na vida que estariam só nos 13% de rendimentos enquanto algumas poucas em que há um real destaque pegam a fatia majoritária?

… mas sempre diversifique

A priori você pode pensar que o negócio do McDonald’s é a alimentação. Mas você está enganado, na verdade são os imóveis: hoje a empresa é uma das maiores detentoras de propriedades imobiliárias do mundo, porque compra as terras e faz contratos com os franqueados de modo com que eles apenas possam negociar com a própria rede.

Isso não significa que você deve forçar seus clientes a negociarem apenas com seu negócio – até porque, considerando a velocidade dos mercados, é praticamente impossível que você o faça com eficiência hoje -, mas sim que, dentro do seu campo de atividade, muito provavelmente existem oportunidades negligenciadas que poderiam ser tão rentáveis quanto o que você considera ser o campo principal hoje.

É importante alinhar as expectativas para gerar valor

A maior validação de um negócio ou processo é a realidade. Não adianta nada ter a melhor ideia do mundo se ela não tiver atratividade do mercado consumidor. Boas ideias demoram um pouco de tempo para serem aceitas, então trabalhe mais no alinhamento da visão de quem serão seus usuários do que em imaginar que eles não são inteligentes o suficiente.

Há uma parte no filme em que os irmãos McDonald, quando contando que o sistema deles dependia das pessoas irem até o balcão fazerem seus pedidos e levarem a comida embora (e não o tradicional “nossas garçonetes vão até você tirar o pedido”), disseram-se inicialmente decepcionados com a reação das pessoas diante disso. Provavelmente em algum momento do seu negócio você já passou por esse desacreditar: saiba que o melhor a se fazer é colocar quem vai usar a ideia pra ter a mesma visão sua (e tenha a humildade de reconhecer se isso não funcionar).

Delimite bem seu negócio e saiba dizer não

Nem todo negócio quer ser o maior do mundo no que faz. Nem todo negócio almeja fazer uma enorme fortuna. Ou, mais recentemente, com uma ida grande de empresas para a bolsa brasileira, é bom lembrar também que nem toda companhia quer abrir seu capital – algumas vão muito bem, são rentáveis e não querem ter mais sócios.

Negócio maduro é aquele que tem uma razoável orientação do que quer fazer e de onde pretende chegar – e, perdoem-nos o trocadilho, é aquele que sabe do que é que realmente tem fome.

Durante o filme observamos o sonho local de dois irmãos se tornar um espalhar nacional (e em seguida global) de um ambicioso empresário que trabalha na expansão. Não há problema algum de estar do lado de um ou de outro. O problema é não delimitar o que se quer fazer com seu próprio negócio antes que grandes mudanças aconteçam e seja tarde demais para dizer “não era bem isso que queríamos”.

Ah, e mesmo que pareça redundante, nunca se esqueça da importância dos contratos. Os formais, aqueles em que juridicamente você pode se apoiar. Conselho de gestão: contratos que não tem porta de saída são como verdadeiras arapucas.

Saiba com quem você faz negócios

A condição sine qua non de fazer qualquer negócio que envolva trabalhar em parceria é saber exatamente com quem você está lidando. Pode parecer uma frase forte, mas, sociedades empresariais têm mais laços que casamentos. Em um casamento, caso não dê certo, você se divorcia, define a guarda dos filhos e separa os bens. Em sociedades existem contratos, pessoas que daquilo tudo dependem, partes interessadas, metas a serem alcançadas.

A assimetria de informação sempre irá acontecer, devemos lidar com isso. Mas em toda negociação que envolva adquirir, expandir ou vender parte de seu negócio, saiba o máximo possível de quem estará contigo nessa. Ou, como costumam dizer os americanos, always know who you’re in bed with.

O filme deixa o espectador dividido entre ser Ray Kroc um gênio dos negócios ou um aproveitador. Deixemos essa avaliação a você após assistir essa verdadeira aula sobre negócios em franquias!

Publicado no Blog da Guide Investimentos em 23/10/2020