Um número absolutamente alarmante para iniciar este artigo: cem milhões. Este é, aproximadamente, o número de pessoas hoje no Brasil que não tem acesso a tratamento de esgoto. Como resultado, doenças que atrasam a vida de crianças em fase escolar e adultos que já trabalham. Os números são impressionantes: em 2018, foram 15 mil vidas perdidas em decorrência de “saneamento ambiental inadequado” no Brasil, com 346 mil internações, sendo que uma parte não desprezível dos atingidos é de crianças e jovens. Dessa forma, qualidade de vida e produtividade são diretamente afetadas.
A aprovação do Novo Marco do Saneamento Básico ocorreu no Senado com uma votação realmente expressiva: 65 votos favoráveis e apenas 13 contrários. Agora seguirá para a sanção presidencial, o que deve ocorrer em breve. A partir da aprovação deste novo marco do saneamento básico no Brasil podemos observar que um serviço antes não acessível a praticamente metade da população brasileira passará a estar acessível nos próximos anos.
O que é o novo marco do saneamento?
Os três pontos mais essenciais deste novo marco são os seguintes:
(i) a necessidade de licitação e competição entre empresas (essas que podem ser as que já exercem o serviço atualmente ou novas empresas de origem privada);
(ii) o direcionamento em formato de metas para universalização dos serviços e;
(iii) regulação mais direta do setor por parte da Agência Nacional de Águas (ANA).
A diferença que isso pode fazer para o provimento dos serviços é a seguinte: a partir de agora, ao contrário da situação atual que se encontrava em boa parte do país, haverá necessidade direta de se estabelecerem prazos e metas realísticas para que o serviço seja colocado em operação.
Tal mudança nos faz lembrar o que ocorreu no final dos anos 90 com a privatização das telecomunicações. Naquele momento o país não possuía sequer 20 milhões de linhas de telefonia fixa. Por mais que o desenho regulatório tenha permitido uma concentração razoavelmente forte neste setor, hoje temos mais de uma linha móvel por habitante no país – o que mostra como, de fato, o serviço foi universalizado.
E as críticas?
Existe uma crítica sobre o atual movimento de que se trataria de uma privatização de um item tão essencial para as pessoas quanto a água. Porém, o que deve ser observado, é que não se trata de uma privatização do recurso em si, mas sim da possibilidade de execução do serviços envolvidos em saneamento básico por empresas privadas (lembrando que não necessariamente serviços serão realizados por essas empresas, dado que deverá ser resolvido este assunto após licitação em cada um dos municípios).
Outro aspecto que deve ser levado em consideração é que o Estado passará a entrar em definitivo como regulador da atuação, função essa que hoje não é tão diretamente executada – ou mesmo não gera sanções a quem não cumpre metas, mesmo quando elas eventualmente existirem. Mais uma vez é importante frisar que isso não significa que a gestão necessariamente ocorrerá por meio de empresas privadas (pode ser que ocorra pelas próprias empresas já existentes), mas sim que haverá um direcionamento mais rigoroso em relação a universalização do serviço e, na prática, sanção a quem não cumprir com suas metas.
O motivo do título deste artigo é bastante simples: com a possibilidade real de universalização dos serviços de saneamento básico nos próximos anos, sairemos de uma situação lastimável para outra que pode, enfim, nos trazer ao atual século em termos de saúde. Afinal, muitas doenças que hoje combatemos em um verdadeiro enxugar de gelo terão sua presença fortemente reduzida com essa mudança.
No Brasil de 2020, a dificuldade de se superar a maior pandemia em cem anos pode ser aliviada em partes por termos um sistema de saúde que abrace a todos, mas certamente por nossa situação em relação ao saneamento básico é mais complicada. É como se um problema urgente (a pandemia do coronavírus) viesse se sobrepor a um outro urgente e importante (a necessidade de aumentarmos o acesso a saneamento básico no país).
Hoje é mais fácil encontrar alguém com acesso a 4G do que com acesso a água encanada e esgoto tratado em nosso país. A mudança desse cenário não é instantânea, mas certamente terá como primeiro passo essa aprovação deste ano. Afinal, coleta de esgoto e água tratada são condições BÁSICAS para o cidadão do século XXI.